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Quinta-feira, 6/1/2005
A profecia de Os Demônios
Celso A. Uequed Pitol

"Ao desembarcar, logo veio ao encontro de Jesus um homem possuído de espírito imundo, o qual vivia nos sepulcros, e nem mesmo com cadeias alguém podia prendê-lo; porque, tendo sido muitas vezes preso, as cadeias foram quebradas por ele, e os grilhões, despedaçados. E ninguém podia subjugá-lo. Andava sempre, de noite e de dia, clamando por entre os sepulcros e pelos montes, ferindo-se com pedras. Quando, de longe, viu Jesus, correu e o adorou, exclamando com alta voz: 'Que tenho eu contigo, Jesus, Filho do Deus Altíssimo? Conjuro-te por Deus que não me atormentes!' Porque Jesus lhe dissera: 'Espírito imundo, sai desse homem!' E perguntou-lhe: 'Qual é o teu nome?' Respondeu ele: 'Legião é o meu nome, porque somos muitos'. E rogou-lhe encarecidamente que os não mandasse para fora do país. Ora, pastava ali pelo monte uma grande manada de porcos. E os espíritos imundos rogaram a Jesus, dizendo: 'Manda-nos para os porcos, para que entremos neles'. Jesus o permitiu. Então, saindo os espíritos imundos, entraram nos porcos; e a manada, que era cerca de dois mil, precipitou-se despenhadeiro abaixo, para dentro do mar, onde se afogaram".

Essa conhecida passagem, intitulada "A expulsão dos demônios de Gesara", está presente no capítulo 5 do Evangelho de Marcos. Repete-se, com pequenas variações, nos Evangelhos de Mateus e Lucas, e é freqüentemente citada como exemplo da ação purificadora de Cristo na alma humana. O fato de aparecer em mais de um relato - o que nem sempre ocorre no Novo Testamento - mostra a sua importância como portadora da Revelação cristã. Mas essa mensagem não está completa. Eis a parte que falta, narrada pelo mesmo Marcos:

"Aproximaram-se de Jesus e viram o possesso assentado, coberto com seu manto e calmo, ele que tinha sido possuído pela Legião. E o pânico apoderou-se deles. As testemunhas do fato contaram-lhe como havia acontecido isso ao endemoninhado, e o caso dos porcos. Rogaram então a Jesus para que se retirasse da região". E Jesus se retirou. Depois, quando o curado da possessão quis fazer parte dos Seus seguidores, Ele negou-lhe abrigo; mas deixou um recado, a ele e a todos os outros: "Vai para casa e para os teus, e mostra como o Senhor teve compaixão de ti".

E ele foi. O que e o quanto percorreu, o Evangelho não nos conta. Como freqüentemente ocorre nessas narrativas, o final está em aberto, a ser preenchido não pelo texto, mas pelos atos que a mensagem pode impulsionar naqueles que a souberem receber. No caso de Fiodor Dostoievski (1821-1881), a associação desta passagem com a intenção geral de sua obra pode parecer óbvia para muitos leitores: seus livros são um longo itinerário de pecadores em busca pela redenção, onde o pesado fardo de ser humano só é suportável com um retorno a Cristo, um Cristo renegado em algum momento de suas vidas. Mas, e se o arrependimento, única exigência divina, é negado pelo homem? É nesse momento que o demônio age, como a Bíblia mostra em tantos outros momentos. Porém, o problema presente em Os Demônios, lançado pela Editora 34, é ainda mais difícil, e suas conseqüências, mais terríveis: o que fazer quando o homem deixa de ser um possesso para tornar-se, ele próprio, um demônio a possuir os outros?

Este é o ponto de partida do romance, e também do problema envolvendo a tradução. As primeiras edições em português escolheram, assim como a maior parte das línguas românicas, traduzir o título russo "Biesi" (literalmente, "Demônios") como "Os Possessos". No Brasil, a tradução de Rachel de Queiroz, baseada numa versão francesa, escolheu pela primeira vez seguir o original. Idêntico proceder teve o tradutor Paulo Bezerra, 63 anos, para a presente edição, lançada em setembro último com a devida reverência e o status de obra histórica. Não bastassem as suas várias notas explicativas, o elucidativo posfácio assinado por Bezerra e os desenhos de Cláudio Mubarac, a nova edição de Os Demônios tem um adicional que a diferencia de todas as suas anteriores: foi traduzida diretamente do russo, língua que Bezerra aprendeu nos oito anos vividos na União Soviética e aplicou, já no Brasil, na tradução de clássicos como Tolstoi, Turgueniev e o próprio Dostoievski, de quem já lançou, pela mesma 34, Crime e Castigo e O Idiota. Com a confiança de quem venceu o prêmio Paulo Rónai de tradução, Bezerra explica, na nota introdutória, a sua escolha a partir da diferença que Dostoievski estabelece no romance: possessos são antes vítimas do que culpados. O verdadeiro demônio corrompe o homem e leva-o à violência e ao terror. Mas, quem são e como são esses demônios de Dostoievski?

Em primeiro lugar, é preciso dizer que ele os viu em ação - ou, pelo menos, pensou vê-los. Baseou-se, como tantas de suas obras, num fato real: o assassinato do estudante russo Maxim Ivanov, sob a acusação de traição, comandado pelo líder niilista Sergei Netchaiev. Os dois pertenciam a um dos muitos grupos revolucionários niilistas que brotaram na Rússia durante o século XIX, e Netchaiev é uma figura cuja importância transcende esse crime: foi autor, juntamente com Mikhail Bakhunin, do Catecismo do Revolucionário, espécie de guia-mestre do terrorismo internacional, inspiração confessa de Carlos, o Chacal e Che Guevara. Suas palavras são tão diretas quanto impactantes: "Nossa missão é destruir, uma destruição terrível, implacável, universal". A destruição que Dostoievski viu, no entanto, não foi a institucional, mas sim a moral. E não se furtou a encher páginas e páginas do periódico O Mensageiro Russo para publicar Os Demônios, entre 1871 e 1873, e mostrar ao mundo o desastre do qual aquele assassinato era parte.

O púlpito quase treme junto com o pregador. Os Demônios é um romance escrito com sangue de dois homens, o de Ivanov e o do próprio Dostoievski. A tradução de Bezerra nos faz perceber com máxima aproximação o tom fervoroso da obra, antes diluído pelas várias camadas de idiomas - em alguns casos, até quatro - que as antigas edições traziam. Mesmo nos momentos mais serenos da primeira parte, a mais calma (o romance tem três) a tensão parece nunca cessar. O livro com os encontros entre Stepan Trophimovitch Verkhovenski, um obscuro ex-professor universitário, e Bárbara, uma aristocrata, embora transcorridos numa tranqüilidade burguesa travestida de requinte intelectual, dão sempre a impressão de que algo de terrível está prestes a acontecer. A relação de mútuo interesse entre ambos dura décadas, baseada na falta de dinheiro de Verkhovenski e na ignorância de Bárbara, e por alguns momentos temos a impressão de que permanecerá assim por muito tempo. Mas, por fim, algo terrível finalmente acontece: entra em cena Nikolai Stavroguine, filho de Bárbara.

Pouco se sabe da origem deste que é um dos mais representativos personagens de Dostoievski, ombreando no pódio com Raskholnikov, de Crime e Castigo, Aliocha Karamazov, de Os Irmãos Karamazov e o príncipe Michkin, de O Idiota. Antes de viajar pela Europa, Stavroguine foi pupilo de Stepan Trophimovitch e, após alguns anos, retorna à Rússia, já crescido, para atrair a cobiça das mulheres e a admiração dos rapazes. A sua carreira dentro dos salões de Moscou haveria de ser exitosa não fossem alguns incidentes do qual foi protagonista, como, por exemplo, morder a orelha do governador e puxar um homem pelo nariz, sem demonstrar nenhuma intenção de desculpar-se. É uma amostra do que diferencia Stavroguine e seus companheiros de pódio: ao contrário das angústias que acometem os demais protagonistas de Dostoievski, nada é obstáculo para seus desejos egoísticos, e ele próprio o confessa: "Sempre posso desejar fazer o bem e sinto prazer com isso; ao mesmo tempo, desejo o mal e também sinto prazer. Mas tanto um quanto o outro continuam mesquinhos demais."

O horror que isso causa a alguns tem a mesma intensidade da atração que exerce sobre outros. Sobretudo em um deles: Pior Stepanovitch Verkhovenski, filho de Stepan Trophimovitch, e mestre de toda a ação que redundará no trágico desfecho do romance. A arrogância e a truculência com que age completam perfeitamente a distância impassível de Stavroguine, e os dois tomarão parte de um grupo revolucionário niilista. Realizam reuniões secretas, e numa delas o teórico mor da revolução, Chigaliov, propõe

"como solução final do problema, dividir os homens em duas partes desiguais. Um décimo ganha liberdade de indivíduo e o direito ilimitado sobre os outros nove décimos. Estes devem perder a personalidade e transformar-se numa espécie de manada e, numa submissão ilimitada, atingir uma série de transformações da inocência primitiva".

Piotr Verkhovenski concorda e dá-se ao requinte de interpretar: "Nos casos extremos recorre-se à calúnia e ao assassinato, mas o principal é a igualdade. A primeira coisa que fazem é rebaixar o nível da educação, das ciências e dos talentos. (...) Os talentos superiores (...) serão expulsos e executados. A um Cícero corta-se a língua, a um Copérnico furam-se os olhos, a um Shakespeare mata-se a pedradas". E também acrescenta: "O tédio é uma sensação aristocrática; no chigaliovismo não haverá desejos. Desejo e sofrimento para nós, para os escravos, o chigaliovismo".

É impossível ser mais claro. Um passo foi dado, desde que Ivan Karamazov declarou, em Os Irmãos Karamazov, a célebre frase que pôs em palavras toda a angúsita de Dostoievski e, lato sensu, de toda a humanidade moderna: "se Deus não existe, tudo é permitido". Agora já não há angústia, porque a crença simplesmente acabou, e a única lei conhecida dos homens é a sua própria, sem o laço frágil da fé na justiça divina.

Mas, mesmo nesse reino, há espaço para a fé. Dois dos membros da organização, Kirilov e Chatov trazem, cada um a seu modo, os únicos resquícios de uma verdadeira convicção em Os Demônios. Kirilov não vê na vida nada além de dor e sofrimento. Sua fé consiste numa negação absoluta de Deus e na afirmação da divindade do homem, a qual só pode ser plenamente atingida com a realização do gesto supremo: o suicídio. Matando-se pela sua própria vontade, pode tornar-se Deus - e o niilista que não comete suicídio, segundo ele, não passa de um hipócrita. Já Chatov é um religioso do tipo russo, o que significa a crença na missão cristianizadora da Rússia diante da corrupção do Ocidente, no que Dostoievski firmemente acreditava. A sua devoção religiosa à Igreja Ortodoxa, ao seu país e ao seu povo só é equiparável à falta de uma fé verdadeira: Chatov procura a Deus como única possibilidade para viver, mas não o encontra, e seu desespero não basta para enfrentar Stavroguine frente-a-frente.

"- E eu queria apenas saber: você mesmo crê ou não em Deus?

- Eu creio na Rússia, creio na sua religião ortodoxa... creio no corpo de Cristo... creio que o novo advento acontecerá na Rússia... Creio... - balbuciou Chátov com frenesi.

- E em Deus? Em Deus?

- Eu... eu hei de crer em Deus".

Diante do tíbio, um dos tíbios que o próprio Cristo maldisse no Apocalipse, só restou a Chatov encerrar-se em sua religião sem fé - e é justamente essa crença desesperada que será, a um tempo, a causa de seu martírio e de sua redenção.

Aí está novamente Stavroguine. Depois de participar ativamente no início do romance, ele passa a atuar menos. No entanto, sua presença é sentida na ação dos outros, especialmente a do líder Verkhovenski, que não se furta a citá-lo em vários momentos. Quando aparece, é sempre num momento crucial, como no encontro com o padre Tikhon, sem qualquer favor uma das mais ricas peças filosóficas da história do romance. Ali, após uma longa discussão sobre a natureza do bem e do mal, da fé e religião, da Stavroguine termina por confessar talvez a mais horrível de suas maldades: a violação da menina Matriocha, a qual, privada de qualquer honra, comete suicídio. Mais uma vez nada o comove, e, ante as perguntas do padre, ele expõe seus objetivos: "eu mesmo quero me perdoar, e esse é meu objetivo principal, todo o meu objetivo!". Não é o único personagem de Dostoievski que ostenta o seu direito à desonra: o mesmo fez Raskholnikov em Crime e Castigo, mas o autor pôs em seu caminho a possibilidade de Redenção, que ele aceitou. Já Stavroguine não só a nega como não vê nela importância alguma: assim como o Zaratustra de Nietzsche - autor que, é bom frisar, surgiu depois da morte de Dostoievski - ele trará "valores novos" através de seus discípulos "destruidores e desprezadores do bem e do mal". Ao Cristo da história de Gesara ele simplesmente dá as costas e segue em frente. E completa essa mesma história, caindo no abismo.

E seguiu até nós. Dostoievski conseguiu enxergar, nas entranhas de um ato isolado, as condições para a consecução da tragédia de um século que ainda não havia nascido. As circunstâncias que engendraram o crime de Os Demônios repercutiriam nos anos vindouros e atingiriam ponto alto na própria Rússia meio século depois, com uma revolução de leitores do Catecismo e pequenos super-homens dispostos a comandar a massa, a qual, segundo Ortega y Gasset, age em uma só direção, a do linchamento. Dostoievski não conheceu outra ação revolucionária que não a violenta mas não chega a particularizá-la em uma ideologia de esquerda ou de direita - e o século de Franco e Stalin, Hitler e Mao Tse Tung, Mussolini e Pol Pot não permite a nenhum lado dessa assembléia de interesses trazer para si o condão de acusar o outro. É a ideologia em si, atuante sobre os homens desvinculados de qualquer lastro moral (e religioso), que os corrompe. Tornam-se autênticos homens-idéia, meros depositários de convicções prontas cujo preço a pagar é a sua própria individualidade, ou, se quisermos - embora a questão, aqui, não seja apenas de palavras -, a própria alma. Que maior exemplo podemos, ironicamente - uma das muitas ironias de Os Demônios -, encontrar na alma do próprio Piotr Verkhovenski, personagem sem autonomia, mecânico, guiado apenas pelo serviço prestado à causa e pela devoção a Stavroguine, pelas quais é capaz até de matar? Diante do próprio, ele confessa: "Você é meu ídolo! Você não ofende ninguém, e no entanto o odeiam; você vê ídolos você todos como iguais, e todos o temem, isso é bom. Ninguém chegará a você e lhe dará um tapinha no ombro. Você é um tremendo aristocrata. Quando o aristocrata caminha para a democracia ele é encantador! Para você nada significa sacrificar a vida, a sua e a dos outros. Você é justamente a pessoa de quem eu preciso!". A voz é dele, "ele que tinha sido possuído pela Legião", mas não faltam candidatos, antigos e atuais, para tomar-lhe o lugar. São eles os possessos, e Stavroguine, do alto do seu pedestal, é o representante terrestre do demônio dostoievskiano, a causa motora de Netchaeiv-Verkhovensky e de todo o desenrolar da trama, cujo fim é um horrendo crime. Aí está o alerta. "Vai para casa e para os teus, e mostra como o Senhor teve compaixão de ti".

Um alerta que o século XX transformou em profecia. Ao romance político - e Os Demônios é, entre outras coisas, um romance político - costuma-se atribuir o dom da premonição. Ainda que, muitas vezes, o enredo jogue a consecução de sua terrível promessa para um tempo longínquo - o mundo de Aldous Huxley em Admirável Mundo Novo, por exemplo -, as circunstâncias que engendraram a situação narrada nunca são produtos de uma só época. Elas permanecem até hoje, mas de uma forma que talvez tivesse, a principio, confundido Dostoievski. Neste 2004 que acaba de terminar - e mesmo antes dele -, o terrorismo não só tomou os Estados como também aquilo que o autor russo considerava o último refúgio para o homem livre: as religiões. Subvertendo os princípios das crenças que professam, os terroristas contemporâneos agem sob a inspiração de caricaturas que não são, em essência, nada diferentes das ideologias totalitárias que marcaram o século XX com a sacralização da coletividade pelo sacrifício do homem. Mas até isso Dostoievski de certa forma intuiu. Um exaltado Verkhovenski antevê, numa iluminação súbita, a composição da sua corte assassina: "O papa na cúpula, nós ao redor e abaixo de nós, o chigaliovismo". E como fazer isso? "Basta que a Internacional concorde com o papa". Uma metáfora excelente para mostrar como a fé - qualquer uma - pode corromper-se e servir (parafraseando Camus) para transformar assassinos em juízes e heróis. Está aí, talvez, o recado da obra para o nosso tempo. Atesta perfeitamente o quanto da profecia de Dostoievski realizou-se, e porque, ao lermos hoje Os Demônios, podemos ouvir as trombetas de um Apocalipse que talvez já tenha chegado.

Para ir além





Celso A. Uequed Pitol
Canoas, 6/1/2005

 

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