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Sexta-feira, 28/1/2005
Inesquecíveis aventuras
Eduardo Carvalho

Aventuras em Londres

Londres pode ser resumida na Speaker's Corner, no Hyde Park: como a cidade mais cosmopolita, intelectualmente estimulante e engraçada do mundo. Não era permitido, em 1872, que se falasse mal da rainha em solo britânico: alguns espertinhos, então, descobriram uma solução: e, num canto do Hyde Park, subiam numa caixa de madeira, para - descolados do chão - falarem livre e impunemente. É a típica tradição britânica, que, por mais estranha que seja, pegou: e continuam lá, aos domingos, uma audiência e oradores com as mais diversas origens e das mais variadas categorias, conversando sobre os assuntos mais básicos e os mais exóticos.

Não existe programa mais divertido em Londres. E arrisco dizer, portanto: no mundo. A Speaker's Corner é, ao mesmo tempo, um símbolo do debate civilizado, o reflexo de um planeta segmentado e uma alternativa para comediantes desconhecidos. Em cada canto se reune, em volta de um orador, o público interessado pelo assunto. Que podem ser dos mais engraçados - como o de um senhor convencido de que e a reencarnação de Jesus Cristo - como os mais pretensiosos - querendo explicar, em poucas horas, toda a engrenarem do "sistema em que vivemos", do mercado financeiro ao tráfico de drogas.

Passei um domingo, recentemente, ouvindo uma discussão entre mais ou menos cinco pessoas - com o orador, neste caso, fazendo mais o papel de moderador, comentarista do debate. Um estudante de literatura estava convencido de que o comunismo ainda não havia sido experimentado da forma como Marx previu; um outro dizia que nunca ia ser, porque nenhuma ideologia se aplica, na prática, com a mesma facilidade que é descrita na teoria. Um gordinho, aparentemente membro do sindicato dos caminhoneiros, concordava com os dois, indeciso. Um irlandês, diretor de uma empresa de tecnologia, dizia que a experiência do Zimbabwe, com Mobuto - assumidamente comunista -, nunca iria civilizar o país, e é preciso entender como o mesmo conceito pode ser bonito e flexível, e nunca resolver nada.

O moderador - com um topete parecido com o de Chistopher Hitchens - acalmava os mais animados. Era impressionante o seu equilíbrio em cima de duas caixas de plástico. Estava sempre quase caindo, mas não ia cair nunca; como o debate que - quase sempre virando confusão - se manteve numa linha civilizada. E todos se divertiam.

Na platéia, havia uma senhora elegante, que passeava no parque com o seu cachorro; um estudante de letras clássicas de Cambridge, que costuma ir ao Hyde Park aos domingos; um negro de gorro e cachecol, com a Economist embaixo do braço; um palestino engraçado, que fazia piadas de todos os comentários; uma menina loira e linda, que, depois de correr pela manhã, de tênis e walkman, juntou-se à discussão. A platéia não poderia ser mais colorida e, em certo sentido, confusa. Assim como é colorida hoje a população de Londres, e confusa como os debates internacionais. Naquele domingo na Speaker's Corner, pelo menos, nada foi resolvido na porrada.

Aventuras no Brasil

Assisti, no auditório do Magdalen College, aos dois documentários sobre Lula lançados recentemente no Brasil: Peões e Entreatos, de Eduardo Coutinho e João Moreira Salles. Foi a primeira apresentação dos dois filmes fora do Brasil, organizada pelo Centre for Brazilian Studies da Universidade de Oxford. A versão internacional das fitas inclui uma curta introdução histórica, e, em Entreatos, a filmagem de uma entrevista coletiva para a imprensa estrangeira, concedida por Lula e a sua equipe. Nessa entrevista, um jornalista - aparentemente espanhol - perguntou a José Dirceu o que ele aprendeu em Cuba que poderia aproveitar se Lula ganhasse as eleições. Dirceu ficou paralisado, e Lula rapidamente pegou o microfone e, com a simpatia que se esforçou para manter durante toda a campanha, respondeu: "Nós também queremos saber". Todos caíram na risada, e Dirceu, quando começou a falar, desviou a conversa para assuntos completamente diferentes.

Esse clima de descontração vazia, orquestrada por Duda Mendonça, é o que domina as cenas de Entreatos. Nós não vemos preocupações sinceras nem propostas sérias, e a campanha, em conversas reservadas ou discursos para a televisão, parece sempre uma pequena conspiração para enganar o Brasil. Todas as campanhas, de perto, talvez sejam assim. E o programa do qual participei, assistindo aos dois documentários no mesmo dia, deve reforçar essa impressão. Porque em Peões os personagens - os companheiros de anônimos de Lula nas greves sindicais no inicio dos anos 80 - estão, em contraste, perdidos entre ilusões marxistas e presos a uma rotina pequeno-burguesa, que negam quase alucinadamente. Esse é, em grande parte, o perfil do eleitorado de Lula. E é compreensível que, para eles, Lula tenha se transformado num ídolo: num modelo de proletário que confessa ter conquistado a esposa com seu fusca azul-turqueza - e, hoje, num presidente de esquerda que conquista o mundo a jato.

Os piores momentos dos documentários são os supostamente mais inteligentes. Quando Lula, por exemplo, diz que o PT é um partido único no mundo, porque nasceu dentro do movimento operário, e não da "proletarização de intelectuais", reparamos na sua equipe e nos seus amigos - Dirceu, Mercadante, Suplicy, Graziano, Frei Beto, etc. -, e nos perguntamos: em qual fábrica essas pessoas trabalharam? Lula pode até ter perdido o mindinho; mas, hoje, é o único da turma - e não pode ser usado para justificar uma generalização agora falsa. Como ficou claro em Peões, o PT não é mais o partido deles.

Aventuras em Oxford

As referências literárias em Oxford são inesgotáveis. E a vida que se leva aqui, tranqüila e bonita, pode ainda ser muito próxima de um capitulo de Evelyn Waugh - e imaginamos se existe alguém como a Julia Flyte, escondida numa casa de campo. Em todos os lugares, em qualquer passeio, esbarramos com um de nossos escritores favoritos. Num dos últimos exemplares do Oxford Student, aliás, um dos textos comentava justamente essa impressão mágica quando se chega na cidade: que é como se entrássemos num livro, num filme.

Descobri, nesta semana, que J.R.R. Tolkien morou no mesmo quarteirão em que estou hospedado. Quando fui ao Magdalen College, na semana passada, para assistir a dois documentários sobre o Lula, atravessei os jardins do Christ Church e o Jardim Botânico: o mesmo percurso que Sebastian e Charles fizeram, em Brideshead Revisited, enquanto conversavam sobre seus planos para o futuro. No Christ Church - onde foi, aliás, filmado Harry Potter - estudaram de Lewis Carroll a Gilberto Freyre: e os personagens de Alice no País das Maravilhas, discretos e simpáticos, estão nos vitrais do dinning room, onde Carroll se encantava com a beleza da filha de outro fellow do Christh Church. A lista de poetas e escritores - let alone cientistas, atores, politicos, músicos, etc. - que passaram por aqui é interminável: Aldous Huxley, Willian Goldwin, P. B. Shelley, W. H. Auden, Oscar Wilde, Thomas Quincey, Graham Greene, John Ruskin...

Acabei de me formar em administração de empresas, em São Paulo, e a comparação é inevitável. A FGV, onde estudei, é muito parecida com a London School of Economics - os alunos, os prédios, os assuntos estudados, etc. -, mas é, em todos os sentidos, completamente diferente de Oxford. E a USP, onde estudei seis meses, não seviria para comparação. O estudante em Oxford é acompanhado individualmente por um tutor, mas tem também total liberdade para ir - ou não - às aulas que quiser. O fundamental é que se estude muito - e sozinho. Numa lecture que fui nesta semana, de Laurence Withehead, sobre democracia em países subdesenvolvidos, fiquei maravilhado com o discurso racional e fluente do professor, enquanto comentava questões especificas de Belize a Coréia do Norte, com uma erudição fabulosa em assuntos políticos e econômicos. A aula se deu numa espécie de sala de estar, equipada com televisão de tela de plasma e lareira, com os professores sentados em poltronas e os alunos em cadeiras e sofás.

Os eventos sociais em Oxford podem também parecer estranhos a um estudante brasileiro. Fui, nesta semana, a uma homenagem ao poeta escocês Roberto Burns, organizada pelo Middle Commom Room do Queen's College - que está completando 700 anos. O pessoal declama um poema e toma uísque, para despois descer ao bar do college. No jantar no dinning room, os estudantes - pelo menos duas vezes por semana - jantam de smoking. E depois saem assim pela cidade. É engraçado como se gosta de black-tie em Oxford. Neste sábado, para um hunting dinner no Town Hall, precisarei também vestir minha gavata borboleta. Aliás, antes que esses eventos acabem, ou mudem de nome: a caça à raposa - que, junto com a Guerra do Iraque, dominou a agenda política inglesa no ano passado - provavelmente será proibida.

Quando, à noite, depois do jantar, tomamos um café enquanto os sinos de Oxford tocam, entendemos por que Gilberto Freyre e Vinicius de Moraes se encantaram com a cidade. Nenhum dos dois - que me conste - morou durante muito tempo em Oxford. Gilberto Freyre veio para um programa de três meses, e Vinicius - interrompido, quando estava em Paris, pela Segunda Guerra - não conseguiu ficar um ano na cidade. Mas Vinicius, entre leituras, cervejas e namoros, disse que sua passagem por Oxford "foi talvez o período mais fecundo de minha vida de poeta".

E de Gilberto Freyre: "Esta velha Oxford, onde de fato estive durante algum tempo de inesquecíveis aventuras intelectuais e psicológicas", para completar em outro artigo: "a melhor temporada da minha vida". E outro trecho de Gilberto Freyre - também estampado numa placa no Centre for Brazilain Studies, onde passei este mês - me parece ideal como despedida: "Justamente agora que eu me sentia tão de Oxford como se isto fosse o meu ambiente ideal. Tudo o mais, depois de Oxford, me parecerá mesquinho".

Eduardo Carvalho
Oxford, 28/1/2005

 

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