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Segunda-feira, 31/1/2005
Machado e Érico: um chato e um amigo
Domingos Pellegrini

Fui fazer a trilha de Machu Pichu, levei dois livros comprados num sebo, Dom Casmurro, de Machado de Assis, e O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo, este já lido na adolescência. O outro já deveria ter lido no curso de Letras, mas a política estudantil me tomava muito tempo, então apenas assinei um trabalho feito em grupo sobre essa chatice de Machado.

Sim, chatice. O enredo é sobre um almofadinha, Bentinho, apaixonado desde a adolescência por uma Capitu que ameaça romper a casca do bom-mocismo, podendo ser uma pioneira feminista, mas que também acaba submissa e chata. O livro é tão pouco interessante, tão cheio de firulas, que só li até o final para desvendar a famosa controvérsia sobre se Capitu traiu ou não traiu Bentinho.

Ora, é claro que traiu, se seu filho é a cara escarrada de Escobar, o amigo de Bentinho. E pode ser perfeitamente desculpada pela traição, diante da chatice, do pedantismo e da pusilanimidade de Bentinho. O sujeito é criado na barra da saia da mãe, e precisa de Capitu para se opor ao plano materno de enviá-lo ao seminário para ser padre. Procura apoio num agregado da família, José Dias, a quem depois renega e deprecia seguidamente.

(Parênteses: será que alguém já sacou a hipótese de Bentinho ser gay? Pois parece, embora provavelmente sem saber disso, naquele tempo de repressões e estigmas. Terá casado, coitado, com uma mulher de personalidade forte, moça macha, como diria um cabra nordestino, procurando assim um equilíbrio que terá se desfeito diante da descoberta dela de que ele não era homem o suficiente, daí o adultério, subreptício como em tudo nesse livro que parece ter sido escrito em louvor da hipocrisia.)

Com o tempo, fica claro que Bentinho coleciona também o cinismo entre seus maus atributos. Um lambisgóia, egoísta, hipócrita e metido a erudito, falando de todos com uma superioridade que só se sustenta por ser herdeiro das propriedades da mãe e viver dos aluguéis, pelo que se presume, pois de resto quase não fala de trabalho, parece personagem de novela da Janete Clair.

Encara com a maior naturalidade o fato de ter escravos a seu serviço. Renega o único ato de solidariedade que pratica, manter correspondência com um vizinho doente. Na adolescência, é totalmente submisso à vontade da mãe. Adulto, é um pau-mandado na mão da mulher, até desconfiar que foi traído, aí se torna uma víbora vingativa. Tudo com uma pernóstica elegância, que nas mentes elitistas parece se confundir com uma superioridade abençoada pela impunidade.

Ao final, Capitu morre na Suíça em exílio forçado por Bentinho, e o filho renegado morre no Egito, em viagem augurentamente custeada também por Bentinho, mortes convenientemente distantes do herói que precisa de tranqüilidade para jantar e ir ao teatro. Se Machado queria construir um personagem repulsivo, conseguiu. Só não entendo porque o livro é considerado um clássico. Só se for um clássico das firulas, já que a narrativa é seguidamente interrompida para metabobagens, floreios e digressões, brincadeiras sobre a montagem dos capítulos e outras frescurites sem função nem importância, a não ser a de realçar o pernosticismo do personagem e do autor, que parece encarnar o personagem com total simpatia.

Lembro da colega de faculdade, que fez o trabalho sobre Dom Casmurro, reclamando da chatice do livro, coisa que creditei à sua pouca intimidade com a leitura. Hoje lhe dou razão. E pensar que esse livro, na época, era leitura obrigatória até no colegial! Duplo prejuízo: terá causado em muitos uma rejeição à literatura, além de justificar comportamentos anti-éticos como os de Bentinho.

Lembro ainda da deslumbrância crítica que senti aos 16 anos lendo O Alienista, do mesmo Machado, que parece outro Machado. E lembro também do apelido dado por outro colega de turma, e com o qual passo a concordar plenamente: Dom Chaturro.

* * *

O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo, nunca é chato. Os personagens crescem moralmente, evoluem, numa paisagem social e econômica também em transformação. Ao contrário do mundo de Machado, o mundo de Érico muda.

Os personagens têm crenças, ou, ao menos, posturas éticas diante dos acontecimentos. Ou fazem ou não fazem. Encaram. Não se escondem nem protelam bentinhamente. Ana Terra e o Capitão Rodrigo são decerto personagens dos mais cativantes e moralmente fortes de nossa literatura.

A gente de Érico, ao contrário das personas de Machado, tem cheiro e suor, e seus dramas de consciência não acabam na esterilidade da omissão, encaminham-se para a luta pela vida, para os deveres familiares ou sociais, reproduzindo a crença hindu do darma e do darta, de que Érico talvez não tivesse consciência mas praticância. Não é preciso ser erudito para fazer o certo; cada um sabe o que é o bem e o que bem fazer.

Creio que todo jovem gaúcho, ao ler O Tempo e o Vento, sentirá orgulho de sua terra e sua gente, sabendo-se resultado de uma história de crenças e lutas. Mas essas crenças e lutas não são narradas acriticamente. As mazelas sociais são claramente vergastadas, como o caudilhismo, a escravidão, o servilismo feminino, o machismo, o doentio gosto gaúcho pela valentia e pela guerra. O autor não é um dândi a se esconder atrás de seus personagens, mas um humanista a revelar claramente sua visão de mundo, sem porém proselitismo.

O estilo de Érico não procura ser elegante, mas é vivo. Não procura mostrar erudição, mas humanidade. Não se olha no espelho da metalinguagem, mas no frescor e na força da natureza.

Aqui e ali ponteiam passagens onde os mortos voltam ao mundo dos vivos, prenunciando Incidente em Antares. Mas a tônica é nas transformações, gente mudando, de lugar e de vida, de crenças e de atitudes, evidenciando uma visão de mundo progressista e solidária, justamente o contrário de Machado em Dom Casmurro.

Não há em Érico uma ponta sequer de cinismo, de descrença, de impotência, de desistência no tentar entender o mundo e melhorar a vida. Mesmo quando se batem numa luta de causas e metas incompreensíveis, como os peões cercados no sobrado, os personagens mantém as crenças ancestrais de solidariedade, verdade, amizade, honestidade, sinceridade, bondade, ou praticando ou tentando ou se arrependendo por não ter praticado, mas nunca se omitindo ou ignorando.

O painel moral criado pelos personagens é apresentado sem moralismo nem pieguismo, e impregnado de sensações e sentimentos relacionados ao trabalho, à convivência e à natureza. Não parece nada com novela de televisão.

Escrever, para Érico, é um exercício de olhar para os outros. Para Machado, parece um exercício de olhar para si através dos personagens. Em Érico, o ego do autor não contamina os personagens. Em Machado, os personagens parecem extensões do ego do autor.

Érico é solidário e plural, escrevendo para se diluir em sua gente. Machado (em Dom Casmurro) é egolátrico, parecendo escrever para se afirmar entre sua gente. Se tivesse de ir para uma ilha deserta e levar apenas esses dois livros, não hesitaria em escolher o de Machado para acender fogo, se fosse preciso para sobreviver, preservando o de Érico para reler sempre que faltasse fé.

Domingos Pellegrini
Londrina, 31/1/2005

 

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