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Sexta-feira, 25/2/2005
A prática e a fotografia
Eduardo Carvalho

Viajar muito não significa viajar bem. E viajar também não é, necessariamente, uma experiência positiva. É possível substituir os melhores momentos longe de casa por uma imaginação fértil. E certas pessoas podem atravessar galáxias e continuar provincianas como uma formiga, que vive num planeta restrito ao alcance de suas patinhas. Não é a quantidade de países visitados que faz com que alguém seja mais cosmopolita, porque o limite do nosso provincianismo não é geográfico; é espiritual. Uma pessoa realmente cosmopolita viaja com a mesmo estilo com que vive. Ser cosmopolita é encarar com a mesma postura uma viagem a trabalho para São Bernardo e um mês de férias com a família no Havaí, sem se emburrar ou se deslumbrar antecipadamente com ambientes desconhecidos.

Uma educação cosmopolita não é baseada exclusivamente em referências urbanas, como museus e restaurares, e muito menos limitada a meia dúzia de cidades no mundo. Não basta saber como as coisas funcionam em Nova York, Londres, Paris ou Tóquio, porque o mundo - o resto do mundo - tem muito mais cores e camadas, enquanto, digam o que quiserem, essas cidades estão cada vez mais parecidas umas com as outras. Esse passeio pelas principais cidades do mundo pode ser ilustrativo para quem nunca viu, mas não é o que falta, hoje, para a maioria das pessoas que se pretende educada. Quase todo mundo já fez os roteiros turísticos das cidades mais convencionais. E viajar a negócios ou trabalhar em outro país não é uma experiência extraordinária, em nenhum sentido: é, hoje em dia, muito comum, e para muita gente pode ser também desgastante e desagradável. É bonito, para certas pessoas, visitar ou morar em Manhattan, mas pode ser igualmente interessante, para um espírito curioso, uma temporada em Teresina.

É bobagem transformar uma cidade numa marca, conferindo a ela um status que não existe, porque uma cidade sozinha não faz com que morar nela seja interessante. E não é assim - para carimbar o passaporte e mostrar aos amigos - que se aproveita, por muito ou pouco tempo, lugares diferentes. No Brasil, essa espécie de provincianismo se acentua, porque - tão longe dos Estados Unidos e da Europa - qualquer experiência mais longa nesses lugares ganha um charme artificial, que está longe de como a maioria das pessoas leva a vida cotidiana. Uma cidade ou país supostamente sofisticados não educam por osmose uma personalidade passiva - nem conferem a ela uma elegância que em casa ela não tem. Você não aprende mais sobre ópera morando ao lado do Metropolitan Opera House em Nova York, nem num apartamento no bairro do Hermitage, em São Petesburgo, vai transformar você num expert em cultura russa. Grandes cidades nunca despertam nem desenvolvem curiosidades inexistentes - assim como uma flor, por mais bem cuidado que seja o canteiro, nunca nasce antes da semente.

E também não adianta plantar um jatobá achando que dele brotarão orquídeas. Uma cidade civilizada não transforma uma personalidade bruta num espírito mais fino; esse é um processo geneticamente improvável. A educação dos modos reflete naturalmente a educação do espírito, e isso não é coisa que se adquire com uma, duas, três viagens para uma cidade mais - digamos assim - urbana do que São Paulo. O que uma grande cidade pode fazer, na verdade, é oferecer ambientes adequados a diferentes interesses. Um brasileiro em Berlim, numa terça-feira, pode comer kebabs e ir a uma festinha brasileira - num cafofo tocando samba -, ou pode tomar café da manhã no Wintergarten im Literaturhaus e, à noite, assistir a um concerto da Berliner Philharmoniker. As opções numa cidade como esta - e mesmo em Los Angeles, Toronto, Milão, Cidade do Cabo, Bangkok, São Paulo - são quase inesgotáveis. Você não precisa se preocupar se quiser ser você mesmo - como precisaria, por exemplo, em Teresina, se quisesse ser um punk local. Em Berlim, você pode ser punk tranqüilamente - e assumir as consequências da sua ideologia, vivendo no espaço que a sociedade lhe reservará.

Será uma vida parecida, adianto, com a de milhões de imigrantes brasileiros em Nova York, Londres e Paris, que reclamam da arrogância dos habitantes locais sem conseguir conversar sobre nenhum assunto com eles. É como viver na sarjeta de uma civilização que finge desprezar. Marginalizados culturalmente, muitos brasileiros acham, depois, que são vitimas de uma espécie de preconceito. E adotam um discurso ao mesmo tempo submisso e arrogante. Submisso porque, quando está fora de casa, começa a viver e a aceitar situações que não aceitaria em seu país, como se trabalhar em telemarketing em Barcelona fosse mais agradável do que em Curitiba. E arrogante porque, quando volta para casa, acha que sua experiência internacional foi extraordinária, única - e que, por isso, pode explicar sempre, numa mesa de bar, como é a vida cotidiana na Espanha. Que, afinal, não seria muito diferente, para essa pessoa, se estivesse em Osasco: mas Osasco é feia, chata, pobre... Quer dizer: a cidade acaba se transformando no que essa pessoa tem por dentro.

Um sinal evidente de provincianismo é adaptar o modo e o vocabulário quando se conversa com pessoas de "classes diferentes" - porque isso é coisa de gente que acredita que existam classes diferentes de pessoas. Isso é falta de educação. E bem comum: repare nos paulistas e cariocas quando vão para o sertão e comecam a falar, por exemplo, "não carece", achando que assim estreitam seu relacionamento com "os locais". Ou ainda mais perto: em gente que trata funcionários como idiotas e patrões como deuses. Não há nada mais feio. O maior exemplo de comportamento desta categoria, aliás, é o puxa-saquismo de estrangeiros, que existe no Brasil em sua forma mais explícita. A situação se parece com a da atriz-modelo-para-não-falar-outra-coisa na boate, oferecendo todos os seus serviços para entrar na ala VIP. Só precisa fugir "do povo" quem tem medo de se misturar e acabar como ele. Mas qualquer separação será artificial. Na área VIP ou não, a atriz-modelo-para-não-falar-outra-coisa continuará fazendo o que sabe fazer - a gente sabe o quê... -, e nunca enganará os mais atentos. Sua pulseirinha não lhe conferirá uma educação que ela nunca quis ter, e que poderia ser a sua única diferença "do povo" que ela tenta desprezar.

Uma educação cosmopolita está nos modos - na forma desafetada como uma pessoa se comporta em diferentes lugares - mas também no conteúdo. E para continuar em viagens: é preciso saber combinar os lugares mais exóticos com os destinos mais comuns. Manhattan e Teresina foram dois exemplos, mas há também Marrakech e Tallin, Mongólia e Tonga - para ficarmos em quatro exemplos cobertos por dois guias bem diferentes, Hg2 e Lonely Planet. Um pretende cobrir o que há de mais sofisticado nas cidades da moda (Lisboa, Estocolmo, Praga, etc.); outro abrange o mundo inteiro, trazendo o mochileiro para o mais próximo possível da vida local (do Camboja a São Francisco). Usei Hg2 para Madrid e Praga e o Lonely Planet em vários países, de Cuba à Bélgica. O Hg2 descobre bares e restaurantes escondidos e imperdíveis, que você não acharia sozinho; o Lonely Planet costuma indicar a você o sanduíche mais barato do bairro. Servem como orientacão. Mas o que eu ia dizendo: mesmo esses guias - qualquer guia - é normalmente escrito por jornalistas provincianos. Isso se percebe em quase todos os comentários: quando um australiano de Darwin, por exemplo, reclama da explosão dos Starbucks em Londres, sem perceber que esses cafés são práticos e inofensivos como o McDonald's - e que, portanto, essa tendência pode ser positiva. Mas não são os guias apenas que devem orientar um viajante com interesses variados - nem no destino nem no estilo da viagem. Afinal, é tão bobo comer apenas nos lugares mais descolettes, listados e explicados no Hg2, como querer viver como "um local", da forma como pretende ensinar o Lonely Planet.

E essa ilusão de que é possível "viver como um local" afeta viajantes - e especialmente brasileiros - nas mais diferentes cidades. Não é com um chapéu de palha que você se parecerá chinês em Chengdu; assim como uma gravata do Stefano Ricci não fara você mais elegante em Nova York. Normalmente é o contrário e que acontece: a gravata lhe cairá mal e o chapéu - num lugar onde os chineses usam boné - o transformará num palhaço involuntário. Por mais que você viaje, por mais tempo que more em outra cidade, você nunca viajará ou viverá como alguém que nasceu nela. Para começar, porque só essa vontade de viver naturalmente em Roma, como se fosse romano, é muito pouco natural; e, para acabar, não é nem bom que essa vontade exista, porque ela encobre uma curiosidade normal que se tem quando visitamos outro país. E esconder essa curiosidade acaba limitando novas observações e comparações entre pessoas e países. E se há, afinal, uma postura cosmopolita durante viagens, ela se baseia justamente nisto: nesta curiosidade por variações sociais e culturais em diferentes lugares. Ser cosmopolita é saber calibrar essas expectativas e não maquiar a personalidade de acordo com os costumes locais. Porque nenhuma cidade se revela na prática como ela promete ser na fotografia.

Eduardo Carvalho
Berlim, 25/2/2005

 

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