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Segunda-feira, 7/3/2005 Menina de Ouro: fantasmas e perdas Marcelo Miranda Porque Clint Eastwood não é qualquer um. O homem que sepultou o faroeste com Os Imperdoáveis agora faz o mesmo com o subgênero do "filme de esporte". A mesma determinação de ir contra o que se espera de uma fita de gênero, o amor de Eastwood pelos personagens, seus ideais e conceitos que apenas um autor como ele pode e consegue ter (e semelhantes a ele, há poucos; igual ou melhor, nenhum), a ânsia em se superar a cada trabalho. Tudo torna Menina de Ouro um achado precioso, uma jóia rara de tamanho impacto e sutileza que literalmente coloca na lona o que foi feito e o que se fizer em se tratando de esporte na tela - para não dizer em se tratando de dramas em geral. O grande tema de todo o cinema de Eastwood, desde seu primeiro longa-metragem (Perversa Paixão, 1971), é a perda. Os protagonistas são sempre almas sem rumo certo no mundo, em busca de alguma coisa que ficou para trás; são seres fissurados por acontecimentos do passado, tentando tornar o presente algo palatável, quase sempre sem sucesso. Até que uma centelha surge no caminho, e a chama reacende - para em seguida ser ou não apagada pelo desenrolar dos fatos. O que move os filmes de Eastwood é a ação, no sentido de movimento, de acontecimento, de atitude. Não é um cinema de maneirismos ou experiências de linguagem: Clint Eastwood é cineasta clássico por excelência. Usa essa característica totalmente a seu favor, para tornar o aparentemente comum e banal em sublime e profundo. A figura da morte é presença constante, não necessariamente no sentido literal da palavra: na maioria das vezes, o impulso de morte ou a conseqüência da morte cria o tal movimento, faz a roda girar. Eastwood é pessimista? Tem quem ache que sim, outros não. Sombrio, sem dúvida ele é. Basta perceber os tipos de projetos escolhidos em sua carreira, a forma como ilumina os personagens e enquadra as cenas, as histórias que decide contar e o modo como o faz. Nada melhor do que ver (ou rever, dezenas de vezes) os filmes mais emblemáticos do diretor para entender e apreciar todo esse mecanismo. Entre os 25 que comandou, figuram trabalhos do porte de O Estranho Sem Nome, Josey Wales, O Cavaleiro Solitário, Bird, Coração de Caçador, Um Mundo Perfeito, As Pontes de Madison, Sobre Meninos e Lobos e, claro, Os Imperdoáveis. E é quando chegamos a Menina de Ouro, outro momento-ápice de uma trajetória brilhante. Quando pensávamos que Eastwood tinha gastado toda a munição no anterior Sobre Meninos e Lobos (tratado sobre o mecanismo da violência numa sociedade marcada pelo egoísmo e individualismo), eis que o velho Clint nos chega com este drama de esporte. O que parecia improvável ganha força na medida em que o diretor lida com o tema de forma afetuosa, usando o boxe como metáfora para, ao mesmo tempo, representar o fim de um tempo e o início de outro. Quando Maggie (Hilary Swank) aborda Frank (o próprio Eastwood), ela busca uma tentativa de se salvar de um destino medíocre; quando ele a recusa, a vontade dele é não trazer mais mediocridade à sua já combalida vida de treinador. Claro que ele cederá, numa tentativa de se dar uma segunda chance - tanto no que se refere ao relacionamento inexistente com a filha quanto à frustração de ter perdido seu melhor aluno. Maggie entra por tabela. Comporta-se como criança, enxerga em Frank a única forma de se dar bem física e moralmente. Ela vai conseguir escapar da mediocridade, a um preço que Frank jamais vai saber se valeu a pena. A propósito, como em qualquer filme de Eastwood, sombras não faltam em Menina de Ouro. Ou mesmo vultos e silhuetas na escuridão. A fotografia de Tom Stern surge com a mesma discrição da direção, com o mesmo jeito de agarrar o espectador pelas imagens às vezes difíceis de enxergar, mas sempre visíveis a quem quiser ver. Tudo conjugado para o que Eastwood quer falar. Essas silhuetas nada mais são que reflexos difusos dos personagens, os verdadeiros fantasmas de um mundo ao qual acreditamos não ter controle. E o elenco principal inteiro se entrega tanto quanto o diretor. Principalmente Swank, que finalmente apaga todas as manchas de sua fracassada carreira após o Oscar por Meninos não Choram e cai de cabeça numa heroína que mistura complexidade com simplicidade, numa interpretação também mesclando o simples com o ousado, a bravura com a delicadeza. Como se não bastasse, e quando menos esperamos (mais uma vez), o cineasta volta a abordar outro tema recorrente em sua filmografia: a subtração da lei para que seja feita alguma justiça. Eastwood parece martelar, a cada filme, que determinadas atitudes do ser humano não necessitam de amparo burocrático se existirem motivos para serem cometidas - mesmo que firam princípios morais ou éticos normalmente considerados como tais. Se essas atitudes estão certas ou erradas, não será o diretor a julgá-las. Na verdade, nem o público ou os personagens. Nem mesmo Deus, entidade quase sempre presente em seus filmes, ainda que na penumbra. É essa a riqueza desse cinema de Eastwood: questionar, dentro de nós mesmos, qual o limite das crenças e ensinamentos pessoais. Mais: até onde se está disposto a ir para seguir o que se acredita ser o bem - por mais que este bem esteja travestido de mal. P.S. pós-Oscar Depois de três anos em que a saga O Senhor dos Anéis manteve a sombra sobre outros concorrentes de maior peso mas menos cacife nas bilheterias (culminando com 11 prêmios para O Retorno do Rei no ano passado), a mais popular premiação cinematográfica reconheceu que, no cinema, acima de tudo, o que vale é a alma que um filme possui. Menina de Ouro foi o grande vencedor da cerimônia, realizada pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. Não foi o que ganhou mais prêmios, mas o que levou alguns dos mais importantes: melhor filme, direção (Clint Eastwood), atriz (Hilary Swank) e ator coadjuvante (Morgan Freeman). Em outros tempos, a Academia jamais daria o prêmio principal a um trabalho tão minucioso e complexo, que lida com assunto polêmico e cheio de caminhos controversos. Enquanto Martin Scorsese, junto com seu O Aviador, partiu para o grandiloqüente, Clint Eastwood manteve o pé naquilo que sempre defendeu: o cinema como forma de mudança e questionamento, nunca como julgamento e imposição. Nota do Editor Este texto foi originalmente publicado no site Cinefilia e conta com a autorização do autor e do editor para esta reprodução. Marcelo Miranda |
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