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Quinta-feira, 10/3/2005
8 de março: não aos tapas, sim aos beijos
Adriana Baggio

Na terça-feira, quando cheguei ao trabalho, só havia um colega na sala. Ele me abraçou, deu parabéns e desejou um feliz Dia da Mulher. Depois, talvez com medo da minha reação, comentou que algumas pessoas não gostam de comemorar essa data. As feministas mais arraigadas sentem-se ofendidas e consideram o dia 8 de março um dos sintomas do preconceito e da segregação entre homens e mulheres.

Tranquilizei meu colega agradecendo o gesto. Eu gosto de comemorar e fico feliz que existam homens gentis e delicados que lembram disso e que dão parabéns às suas esposas, namoradas, familiares e colegas de trabalho. Assim como também aprecio um homem que abre a porta do carro, puxa uma cadeira no restaurante e deixa você entrar ou sair primeiro do elevador. Mas existem mulheres que não gostam disso.

A razão para muitas delas é o desejo de tentar ser coerente com as reivindicações de igualdade entre homens e mulheres. Assim, se queremos ter direito de fazer tudo que os homens fazem, devemos aceitar o pacote de deveres também. Nessa ótica, não tem por que os homens fazerem pela gente algo que não faríamos por eles.

O grande problema dessa linha de pensamento é confundir igualdade de sexo com igualdade de gênero. Sexo é biológico, gênero é social. O que as mulheres devem exigir (e trabalhar para obter) é que não haja diferenças sociais entre nós e eles. Estou muito satisfeita em ser biologicamente mulher e não gostaria de ser homem, mesmo tendo que me submeter a rituais bárbaros como manicure, pedicure e depilação. No entanto, socialmente, não acho justo ter um salário menor que um homem quando estamos nas mesmas condições profissionais, apenas por ser biologicamente mulher.

Quando as mulheres colocam o foco no que realmente precisa ser feito, aspectos como as atitudes cavalheirescas dos homens deixam de representar um anacronismo para adquirirem o sentido que realmente têm: o de gentilezas que as pessoas fazem umas pelas outras, às vezes sem se conhecerem, e que com certeza tornam o mundo muito mais civilizado.

Ao dirigir o foco da igualdade para o que realmente interessa, estaremos falando de coisas muito mais importantes e sérias, pelas quais vale a pena se indignar: diferenças salariais, violência doméstica, direito a decidir o que fazer com o próprio corpo. Por isso, antes de achar que comemorar o Dia da Mulher é assumir uma segregação, é preciso lembrar da origem dessa data e do seu significado para a luta por condições melhores para as mulheres.

Ao contrário do Dia das Mães, Dia dos Pais e Dia dos Namorados, o Dia da Mulher não é uma data comercial, criada para aquecer a economia em épocas de vendas baixas. A data foi escolhida porque em um 8 de março do século XIX, mais de 100 mulheres morreram em um incêndio na fábrica onde trabalhavam. Elas estavam em greve e reivindicavam salários iguais aos dos homens e diminuição na carga de trabalho de 16 horas diárias.

Ataualmente, não se prende mais grevistas nas fábricas para atear fogo nelas, mas o problema dos salários continuam. Assim como o da violência doméstica. Mesmo que hoje as mulheres estudem, trabalhem e até votem, em casa ainda são submetidas a tratamentos típicos de eras menos civilizadas. E o pior é que esse assunto ainda é tabu. As pessoas não gostam de falar nem de saber disso. Parece algo que acontece somente em barracos de favelas e entre homens bêbados e mulheres que gostam de apanhar. Mas pode estar ocorrendo na casa da mulher que está ao seu lado no trabalho, no shopping, no restaurante, na boate.

Mesmo que hoje esse assunto tenha muito mais visibilidade, as estatísticas mostram que é apenas a ponta de um enorme iceberg. Os motivos para que a maioria dos casos não seja conhecida são muitos: medo (de sofrer mais agressões, de não ter para onde ir), vergonha (da família, que muitas vezes protege o agressor, dos colegas de trabalho, dos amigos), certeza da impunidade. Quando a vítima depende do agressor e não tem meios de mudar essa situação, quando a sociedade e a família não apoiam a mulher agredida e quando a justiça raramente pune (e quando o faz, sua mão é tão leve que não intimida ninguém), estamos falando de uma violência institucionalizada. Ela pode até ser combatida no discurso, mas, na prática, encontra um ambiente fértil para continuar existindo.

De todos os problemas que as mulheres enfrentam hoje, acho que esse é o mais grave, por atingir o que as pessoas têm de mais precioso: a dignidade. Além do mais, é algo que acontece no âmbito das relações afetivas e familiares. Salários desiguais e direito ao aborto são questões de uma amplitude maior, da esfera social. Mas a violência doméstica acontece entre pessoas que, teoricamente, têm laços de amor mais profundos entre si do que com qualquer outra. Esse é o grande paradoxo.

Por tudo isso, acredito que o Dia da Mulher é uma excelente oportunidade para questionar essas situações e cobrar atitudes do governo e da sociedade que ajudem a mudar a realidade. O que não impede, também, que se comemore a data com leveza e alegria, aproveitando para dar e receber carinho. O parabéns de um homem pelo Dia Internacional da Mulher não precisa ser rechaçado como hipocrisia. Vamos manter foco: curtir o que é bom e questionar o que realmente está errado e precisa ser modificado.

Adriana Baggio
Curitiba, 10/3/2005

 

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