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Sexta-feira, 11/3/2005
Separar-se, a separação e os conselhos II
Fabrício Carpinejar

Magritte

Não conheço algo mais irritante do que dar um tempo, para quem pede e para quem recebe. O casal lembra um amontoado de papéis colados. Papéis presos. Tentar desdobrar uma carta molhada é difícil. Ela rasga nos vincos. Tentar sair de um passado sem arranhar é tão difícil quanto. Vai rasgar de qualquer jeito, porque envolve expectativa e uma boa dose de suspense. Os pratos vão quebrar, haverá choro, dor de cotovelo, ciúme, inveja, ódio. É natural explodir. Não é possível arrumar a gravata ou pintar o rosto quando se briga. Não se fica bonito, o rosto incha com ou sem lágrimas. Dar um tempo é se reprimir, supor que se sai e se entra em uma vida com indiferença, sem levar ou deixar algo. Dar um tempo é uma invenção fácil para não sofrer. Mas dar um tempo faz sofrer pois não se diz a verdade.

Dar um tempo é igual a praguejar "desapareça da minha frente". É despejar, escorraçar, dispensar. Não há delicadeza. Aspira ao cinismo. É um jeito educado de faltar com a educação. Dar um tempo não deveria existir porque não se deu a eternidade antes. Quando se dá um tempo é que não há mais tempo para dar, já se gastou o tempo com a possibilidade de um novo romance. Só se dá o tempo para avisar que o tempo acabou. E amor não é consulta, não é terapia, para se controlar o tempo. Quem conta beijos e olha o relógio insistentemente não estava vivo para dar tempo. Deveria dar distância, tempo não. Tempo se consome, se acaba, não é mercadoria, não é corpo. Tempo se esgota, como um pássaro lambe as asas e bebe o ar que sobrou de seu vôo. Qualquer um odeia eufemismo, compaixão, piedade tola. Odeia ser enganado com sinônimos e atenuantes. Odeia ser abafado, sonegado, traído por um termo. Que seja a mais dura palavra, nunca dar um tempo. Dar um tempo é uma ilusão que não será promovida a esperança. Dar um tempo é tirar o tempo. Dar um tempo é fingido. Melhor a clareza do que os modos. Dar um tempo é covardia, para quem não tem coragem de se despedir. Dar um tempo é um tchau que não teve a convicção de um adeus. Dar um tempo não significa nada e é justamente o nada que dói.

Resumir a relação a um ato mecânico dói. Todos dão um tempo e ninguém pretende ser igual a todos nessa hora. Espera-se algo que escape do lugar-comum. Uma frase honesta, autêntica, sublime, ainda que triste. Não se pode dar um tempo, não existe mais coincidência de tempos entre os dois. Dar um tempo é roubar o tempo que foi. Convencionou-se como forma de sair da relação limpo e de banho lavado, sem sinais de violência. Ora, não há maior violência do que dar o tempo. É mandar matar e acreditar que não se sujou as mãos. É compatível em maldade com "quero continuar sendo teu amigo". O que se adia não será cumprido depois.

* * *

Namoros e romances interrompidos provocam uma irritante pergunta anos depois: como seria a minha vida se estivéssemos juntos? Novos relacionamentos não apagam a lembrança interrogativa. A marca. O número do telefone na agenda. A ausência de uma última chance. A esperança de um encontro acidental.

Um desejo pela metade ainda é um desejo inteiro. O amor não se encerra, se abandona. Amor com dedicação dos dois, e dedicação é compreensão, não pode dar errado. O que dá errado é o medo da responsabilidade, que gera cobrança. Quanto maior a chance de vingar o amor, mais se cria um jeito de interrompê-lo. São detalhes bobos e tremendamente ridículos que costumam separar. Um pouco de esforço, um pouco de paciência e nada teria acontecido. O orgulho é um péssimo confidente e não deixa voltar atrás.

Amor não é fácil. O que é forte perturba, não acalma. Não conversei até esse momento com nenhum apaixonado com a cabeça no lugar. Todos estão sem cabeça e uma boca imensa a murmurar sozinha. Assim como os separados têm suas razões e concordo com ambos os lados. Mas por que os separados tem tanta necessidade de explicar o fim do namoro ou do casamento? A gente só explica o que não conseguiu entender. Minha culpa é explicativa, minha confiança é lacônica. O amor que tinha tudo para ser ideal e não foi sofre do "passado do umbigo". O passado do umbigo é acreditar que a época mais feliz já aconteceu entre os dois e não há maneira de repeti-la. Concordo: não há como repeti-la. Só que o passado do umbigo não permite que a felicidade cresça de outra forma, diferente da circunstância anterior. A mínima mudança de repertório e ambos ficam chateados. Não percebem que mudaram de emprego, mudaram de idéias, mudaram de rotina. E por que não podem mudar a forma de amar? Termina-se prisioneiro do início da relação e não se busca amadurecer a diferença, e sim insistir, em grau da chatice máxima, com a semelhança (meu otimismo diz que sou muitos mesmo quando estou sozinho; um de mim deve prestar).

Outro sintoma que enfraquece o amor é a aparência diante dos colegas e conhecidos. Na hora que o par escuta: "vocês fazem um casal perfeito", cuidado, esse elogio é perigoso e apressa o vinho. Os dois são tratados como casados ainda que namorando. "O que queremos?" assume a condição deturpada de "o que eles vão pensar?". O casal passa a viver mais para fora do que para dentro de casa. A expectativa dos outros contamina a pureza do trato, do convívio, a solidão de raríssimas estrelas e terra escura. Namorar assume o despropósito de desfilar. Há tanta gente metendo bedelho na história que o par não consegue escutar suas vozes e vontades.

Casal perfeito é o que se separou alguma vez para voltar mais sereno e apaixonado.

* * *

Fico cansado quando escuto "a futilidade das roupas, a futilidade das lojas, a futilidade de desfiles e modas". O discurso pronto a declarar despojamento e vida franciscana. É o mesmo que criticar os homens pelo futebol. Cansa a lengalenga conta o consumismo, de que devemos encampar valores altos, nobres e lúcidos da boca para fora. Não cola subir no púlpito para fingir desenraizamento. Não se agüenta ser profundo todo momento - seria um tédio letal falar de Sartre e Simone de Beauvoir a cada sinal de trânsito. A futilidade é a chance de reaver o descanso e o equilíbrio. Confesso: adoro lojas, adoro comprar roupas. Algum problema? É um exercício de imaginação. Provar, tirar, pôr as peças. É ser escalado para fazer o figurino de um filme, testar novas personalidades, impor personagens fora de minha rotina. Uma gravata muda o pescoço. Um casaco ajeita a cintura. Um sapato abre o rosto. Não se deve subestimar a mistura das cores. Escolher a roupa é ganhar o poder de definir se vai chover amanhã ou não. Ou alguém confia em quem combina o cinto com as meias? Posso estar cheio de problemas, atarefado, apressado, brigado, acabei de me desentender com a minha mulher ao telefone e esqueço tudo ao entrar em uma loja. Recebo a tranqüilidade de mão beijada. Toda loja se transforma em minha casa na serra, minha casa na praia. Fico anestesiado, festivo, brinco com as atendentes. Não há ninguém incomodando e xingando, suplicando ajuda, me questionando. Terei um tempo só para mim. Todo o provador se torna uma cama com espelho no teto. Intervalo em que visito meu corpo com satisfação. É narcisismo, talvez, narcisismo ao avesso, de procurar ser um outro bem melhor do que sou. E qualquer um pode fazer isso de graça. Não estou falando em dívidas. Experimentar não tira a carne. As lojas são o meio essencialmente democrático até a hora do pagamento. E que satisfação entrar em um número menor! Compro a roupa mesmo não gostando dela. Para usar de peça testemunhal em dias de desvalia profunda. Sou metrossexual, duvido. Dificilmente alguém com meu nariz será metrossexual. Aliás, nem sei como entrar no grupo. Tem que ter indicação como no Orkut? Parece mais uma decisão sexual do que uma moda. Responderei a partir de hoje os questionário de embarque colocando um x em outras opções: não sou homossexual, heterossexual ou bissexual, sou metrossexual.

Nota do Editor
Fabrício Carpinejar é poeta, autor de seis livros: entre eles, Cinco Marias (2004) e Caixa de Sapatos (2003). Estes textos foram originalmente publicados em seu blog e reproduzidos aqui com sua autorização.

Fabrício Carpinejar
São Paulo, 11/3/2005

 

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