busca | avançada
53754 visitas/dia
2,0 milhão/mês
Quarta-feira, 30/3/2005
Uma outra moda
Daniela Sandler

Não faz nem um mês que a temporada de moda para a próxima estação acabou, com a Semana de Moda de Paris fechando a seqüência internacional de desfiles. Nem um mês -e, no entanto, de acordo com a fugacidade dos mundos da moda e do jornalismo, onde "ontem" é "velharia", já não se fala mais no assunto. Mas, como escreve o Luis Eduardo Matta no Digestivo esta semana, a moda está na moda (e já adianto que, ao planejar o tema deste texto, ignorava a coluna de meu colega -foi coincidência, ou talvez o espírito do tempo...). Assim como a gastronomia e a enofilia, o estilismo, antes reduto elitista de connoisseurs, está cada vez mais integrado à cultura de massas, popularizado em publicações e eventos de grande audiência e democratizado em versões mais acessíveis da alta costura.

Não que o interesse por vestimentas seja novidade. Afinal, modas e marcas pegam justamente por sucesso de público, e já nos anos oitenta a novela Ti-Ti-Ti levava os bastidores do estilismo ao popular horário das sete. A diferença, agora, é o quanto a fissura coletiva por moda está antenada com os nomes, idéias e formas da alta costura, dos conceitos ousados das passarelas, das vanguardas. E, respondendo a esse interesse que vai além dos círculos exclusivos de críticos de moda e clientes abonados, muitos estilistas têm desenvolvido linhas populares, que levam seus nomes famosos e são vendidas a preço baixo, em escala industrial. É o caso, por exemplo, de Isaac Mizrahi, que tem parceria com a loja de departamentos norte-americana Target (um Wal-Mart mais arrumado), ou de Karl Lagerfeld, que encabeça nada menos que a marca Chanel, e que desenvolveu uma coleção para a loja de roupas européia H&M (uma espécie de McDonald's da moda). Ainda que as peças desenhadas para suas versões populares sejam simplificadas, despidas tanto da ousadia quanto da excelência de materiais e execução de suas linhas originais -para não falar, é claro, da óbvia perda de exclusividade- ainda assim as roupas retêm um espírito fashion. O corte extra-volumoso da saia rodada, a estampa gigante e bicolor de flores em Mizrahi, ou o conceito "andrógino" unindo as criações de Lagerfeld: ainda que diluídos para consumo em massa, os sinais da alta moda, assim como os nomes, funcionam para atrair atenção e impulsionar vendas.


Alta costura usável?

Talvez seja meio culpa de Sex and the City, o seriado cujas protagonistas pareciam levar a vida como se o cotidiano fosse um eterno desfile de moda. Carrie, a narradora, saltitava pelas ruas de Nova York como se os seus sapatos de salto-agulha fossem tênis de corrida. Seu guarda-roupa era composto de peças ousadas, combinações elaboradas e conceituais que nós, os comuns mortais, vemos apenas em fotografias de desfiles, em premiéres de Hollywood ou nas páginas da Vogue -e que evocam sempre aquele suspiro: "sim, é bonito, mas quem é que vai sair na rua vestindo isso?!?" Pois Carrie saía, e com naturalidade, mostrando como roupas excepcionais podiam parecer práticas e usáveis, normais até. Ia jantar num restaurante da moda vestindo um conjunto escultural, uma mistura de origami e terno desconstruído; passeava dia e noite com micro-shorts tão curtos e justos a ponto de tornar a calcinha desnecessária, equilibrada em stilettos; combinava uma camiseta amarela de Mickey Mouse com blazer chique e calça de couro para um jantar fino; usava mangas bufantes, camiseta de seda rosa-choque em pleno dia, cortes assimétricos...

O apelo de Sex and the City sempre me pareceu residir em o seriado ser uma espécie de versão televisiva de uma revista feminina. Todas as seções da Elle ou da Marie Claire -da coluna de comportamento às dicas de sexo, da reportagem sobre STDs ao guia de estilo, da lista de restaurantes "in" aos editoriais de moda -todas essas segmentações jornalísticas ganhavam vida na telinha, incorporadas nas vidas "reais" do quarteto principal. Sex and the City serviu assim para divulgar alta moda e alto estilo como algo tangível e verossímil, ainda que tenha sido mais fácil copiar o drinque Cosmopolitan do que as centenas de sapatos Manolo Blahnik das moçoilas. Ao mesmo tempo, o seriado funcionou por ter dado forma a desejos já presentes no público -difícil apontar o que veio primeiro.

Indústria e arte

Seria apenas nisso que consiste a moda -uma mistura de anseios materialistas e ditames cegos? De um lado, desejos de consumo, superficialidade, preocupação com as aparências e com "pertencer" socialmente; de outro lado, uma série de regras arbitrárias, ditatoriais, regendo os hábitos da maioria sob o disfarce enganoso do "gosto"? É fácil reduzir a moda a essas explicações quando se pensa nas páginas e páginas de anúncios nas revistas, nas vitrines homogêneas, nas multidões de pessoas vestindo o último modismo (na estação passada foi o poncho; agora, são os bolerinhos). E, de fato, muito da moda é pura indústria. Assim como muito dessa indústria se aproveita de inseguranças, incertezas e voracidade dos consumidores.

Mas, assim como há filmes de todo tipo -e Duro de Matar é chamado de "cinema" tanto quanto Morangos Silvestres, sem que a existência de um ameace ou desqualifique as características do outro-, na moda é a mesma coisa, e as generalizações pouco servem ao entendimento. É possível enxergar na moda a arte, a individualidade, a possibilidade de expressão tanto do estilista quanto do usuário. A criação de roupas tem muito de arte plástica: o estilista molda formas no espaço -o espaço do corpo-, constrói volumes e relevos no ritmo de sombra e luz em plissados, drapeados, pregas, como um escultor. E, como um pintor, trabalha com cores, texturas e imagens, com estampas abstratas ou figurativas. Até mesmo um dos textos fundamentais da história da arte, a História da Arte na Antigüidade, que o alemão Johann Joachim Winckelmann publicou no fim do século dezoito, contém extensas passagens explicando as vestimentas dos povos antigos representadas em esculturas e murais. Para Winckelmann, o entendimento da arte da Antigüidade passava pela descrição das túnicas egípcias, ou dos diferentes modos de drapear os mantos gregos.


Uma coleção e um desfile dão vazão a idéias que transcendem as peças individuais, como narrativas conduzindo o conjunto: assim, há também um pouco de poesia, romance, teatro e cinema na moda. Estilistas incorporam tendências sociais, referências da cultura pop -música, cinema, personalidades- ou de culturas tradicionais (folclore, artesanato), inspiram-se na moda das ruas e de "subculturas", baseiam-se nas artes visuais assim como na própria história do vestuário e do desenho de moda. Não é à toa que criadores de outras áreas muitas vezes migram para a moda e vice-versa, como no caso dos irmãos Campana e sua parceria recente com as sandálias Melissa. Em entrevista ao jornal norte-americano The New York Times do dia 27 de março, os irmãos declararam: "Não há fronteiras entre a arte, a moda, e o design". Nem todos os estilistas podem se dar ao luxo de dizer o mesmo, dado que a arte da criação é limitada por outros aspectos, como economia, praticidade ou mercado. Mas talvez possamos concordar que, se há fronteiras entre arte e moda, elas são tão permeáveis quanto a trama aberta das sandálias que os Campana criaram.

Consumidor-criador

Mas não é só o estilista -ou o editor de moda da revista, ou o diretor de estilo e produção de um desfile- que tem poder criador. Quem usa as roupas também pode exercer certo grau de criatividade, começando pelo ato de escolher quais peças comprar ou usar. Alguns se aventuram a costurar em casa, ou a tricotar; outros colocam apliques ou recortam, retorcem e amarram camisetas. O culto dos brechós ou das roupas vintage tem muito desse desejo de expressão individual: nas lojas de roupas usadas é possível encontrar itens únicos e transitar não apenas entre épocas diferentes, como também entre diferentes estilos e tendências. Ainda que a pessoa não tenha feito as roupas com as próprias mãos, pode fazer experiências estéticas e compor combinações inusitadas, ou elaborar um traje em torno de algo exclusivo como um broche de cem anos ou uma pantalona dos anos 70. A criatividade está na colagem, ou, como talvez alguns prefiram, bricolage. Foi colagem, afinal, que muitos artistas da vanguarda modernista do começo do século vinte fizeram, criando arte a partir de objetos ou imagens preexistentes em vez de manufaturar suas próprias figuras. Fragmentos de jornal, páginas de livros, pedaços de tecido, rodas de bicicleta, mictórios: tudo isso serviu de matéria-prima para colagens (como em Kurt Schwitters ou Hanna Hoch), ou foi incorporado a pinturas (Picasso), ou virou instalação espacial (Marcel Duchamp).

Assim, a arte de se vestir tem espaço ao lado da arte de desenhar ou costurar roupas. E, assim como outros aspectos -comida, música, comportamento, sotaque- essa arte é uma manifestação coletiva, ainda que heterogênea. Tóquio já está famosa pelas loucuras da sua moda de rua (ou, no jargão das revistas do gênero, streetwear), em que os jovens se revestem de elaboradas composições, muitas vezes em torno de um tema ou personagem, com estampas chamativas, cabelos coloridos e muita maquiagem -quase como um baile a fantasia. Já Nova York, com o espírito alta-costura encarnado em Sex and the City, é notória pela elegância balançeada entre o arrojado e o conservador, dos ternos bem-cortados da Quinta Avenida às saias assimétricas do Lower East Side. Em Berlim, a moda de rua é edgy, ou seja, rejeita convenções e procura um visual chocante, ríspido, agressivo até: cores descombinadas, sobreposições, corte imperfeito, roupas recicladas. A moda urbana do Brasil corresponde, de certa forma, ao estereótipo que os estrangeiros fazem sobre sensualidade e corpo de fora: há de fato muito mais colos e pernas à mostra, leveza de tecidos, balanço de saias e vestidos femininos (em parte, pelo clima).

Em que consiste a elegância

Obviamente, há muita gente com estilo vanguardista em São Paulo, assim como nem todo mundo em Berlim usa saias sobre a calça jeans ou tem cabelo azul. Entre a ousadia de uns e a neutralidade de outros, e a grande variação da maioria (pois boa parte das pessoas alterna momentos mais ousados ou mais conservadores), paira o inefável conceito de elegância. Assim como o corte das saias ou a cor do rímel, a idéia do que é elegante depende das flutuações da moda. Nos anos 80, era impensável sair às ruas com calça de boca larga, paletó acinturado e camisa de lapela grande. Butiques, revistas e o código informal e silencioso dos grupos sociais (da festa chique aos corredores dos colégios) exibiam cinturas altas, muito acima do umbigo; calças afuniladas; camisas e suéteres folgados, ajustados na cintura e nos punhos, beirando o bufante; ombreiras e blazers avantajados. Hoje, basta assistir a um filme feito na época para notar não apenas a diferença, mas a aparência desconjuntada daqueles vestidos soltos e desestruturados, ou o jeito inflado e circense das calças baggy com camisão enfiado sob o cós. Pois, afinal, estamos todos enfiados em linhas limpas e alongadas, calças retas, jaquetas ajustadas, e cinturas baixíssimas.

Seria a elegância tão completamente dependente da moda? A nossa idéia do que é belo, do que é agradável esteticamente, e o nosso próprio gosto parecem variar de acordo com as pranchetas dos estilistas ou o guarda-roupa das celebridades que "ditam" estilo. Parece não haver nada de permanente ou essencial na elegância, nada de pessoal no gosto. Será? Em primeiro lugar, é bom pensar que o gosto e os ideais estéticos são tendências históricas, sociais. São como as convicções políticas, os padrões artísticos ou literários, as correntes filosóficas, os conceitos e desenvolvimentos científicos, as idéias sobre relacionamentos pessoais, sobre família, sobre os papéis dos sexos, os hábitos e costumes: tudo isso são forças sócio-culturais que mudam com os tempos, que se transformam conforme as capacidades, o intelecto e a sociabilidade humana mudam.

A crença nos deuses do Olimpo, ou a fé na Terra como centro do Universo não eram demodé nas suas respectivas épocas -eram as crenças e valores possíveis de acordo com as condições materiais e culturais de seu tempo. Em contrapartida, os criacionistas norte-americanos que rejeitam a teoria da evolução de Darwin são, hoje em dia, muito mais que demodé ou anacrônicos: são perigosamente reacionários. Do mesmo modo, pintores como Velasquez, Rubens ou Rafael não eram conservadores, atrasados ou acadêmicos; nem sua arte, vista hoje em perspectiva histórica, pode ser considerada assim. Mas um pintor contemporâneo, por mais exímio que seja, se decidir pintar retratos realistas, cenas figurativas ou madonas renascentistas da mesma forma que esses antecessores, estará ignorando todas as transformações, criações e batalhas dos artistas que vieram desde então, e todas as discussões teóricas, estéticas, políticas e pedagógicas sobre arte dos últimos três ou quatro séculos. Novamente, não será simplesmente demodé; e não é uma questão de gosto -é uma questão de consciência crítica do momento em que se vive, e das forças passadas e presentes com que todos nós somos confrontados. Inevitavelmente, temos de nos haver com essas forças, com a história e os porvires, ainda que não tenhamos, necessariamente, de concordar.


Constantes

Assim, a mudança da moda, do gosto e do conceito da elegância pode ser entendida como parte desse movimento incessante (embora nem sempre progressivo) da história humana. O que não significa que, assim como na arte e na ciência, não hajam constantes. Muito se escreveu sobre a "beleza ideal"; ainda que uma beldade barroca fosse considerada rechonchuda demais hoje em dia, há pontos em comum entre os gostos de diferentes tempos: simetria, harmonia, delicadeza de traços, proporção adequada. Em parte, todos os homens talvez partilhem certos ideais básicos, certas invariâncias. Esses ideais não são "essenciais", ou apriorísticos; são, do contrário, determinados por práticas sociais, ou instintos desenvolvidos em milênios de evolução. A prova é que há (e é bom que haja) sempre muita gente que contesta, discorda e tenta transformar esses critérios. Os artistas modernos, por exemplo, romperam com simetria e proporção. Foram execrados no início, e hoje viraram paradigma.

"Você, da melhor forma possível"

Muitos aspectos da moda são, é claro, ditatoriais. Muito do comércio é feito à custa da docilidade e submissão de consumidores, ou da arbitrariedade de modismos. Mas há muito da moda que permite o desenvolvimento da cultura e a expressão individual. Nem todo desejo por roupas novas ou fascinação por editoriais de moda é sinal de consumismo exagerado, superficialidade ou dogmatismo. Vestir-se bem permite exercer juízo estético no nível mais básico -nossa própria imagem. Daí o encanto de programas como What not to Wear, em que dois fashion experts ajudam incautos deselegantes (indicados para o programa em segredo, por conhecidos ou família) a encontrar um senso de estilo, montando um novo guarda-roupa e compreendendo o que chamam de "regras" da moda.

À primeira vista, pareceria mais uma lavagem cerebral, uma produção em série de pessoas vestidas de forma idêntica, de acordo com os mesmos parâmetros externos. Mas o show está longe disso. Seus carismáticos apresentadores -um consultor de moda e uma ex-editora- dedicam-se a transformar as pessoas em versões mais aprumadas de si mesmas. "The Best Possible You" ("você da melhor forma possível") é o lema. Ainda que algumas regras sejam constantes (sim, a calça afunilada de cintura alta é execrada), há muito espaço para variações. Cada pessoa tem sua personalidade interpretada em "regras" diferentes, e, quando saem às compras, encontram centenas de alternativas com que executar os princípios básicos -alternativas multiplicadas pelas possibilidades de combinação. Ao final de cada episódio, os ex-deselegantes -cuja transformação inclui cabelo e maquiagem- invariavelmente se emocionam. Sua comoção não vem do novo par de sapatos, nem mesmo do valor do novo guarda-roupa (5 mil dólares). Vem da surpresa de se verem belos, atraentes, bem-cuidados; de um amor-próprio insuspeitado e necessário. What not to Wear é muito mais do que um show sobre moda -ou talvez a moda seja muito mais do que vitrines e revista Vogue. É essa moda que podemos, e devemos, celebrar.

Daniela Sandler
Riverside, 30/3/2005

 

busca | avançada
53754 visitas/dia
2,0 milhão/mês