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Segunda-feira, 11/4/2005
Das Virtudes do Papa e dos Vícios de Crumb
Andréa Trompczynski

Ninguém é mais pop que o Papa. Jesus Cristo ou os Beatles não foram tão famosos, nem arrastaram milhões de pessoas em funerais fantásticos como este que estamos vendo. Penso no corpo deteriorando em dias e dias levado daqui para lá. Tantos católicos! Nunca se soube que eram tantos. Presidentes e governantes de joelhos, o povo atropela-se e sacrifica horas sem fim nas filas, o Vaticano em polvorosa pelo Papa que virá. Como nos velórios do interior em que o defunto transforma-se em santo, o papa transformou-se no próprio redentor da humanidade, um Cristo de corpo morto, sem possibilidade de ressurreição. Que venha o próximo, precisamos de deuses.

Um dos requisitos para o candidato é a intimidade com a mídia. O futuro papa deve ter carisma e estar antenado com as novidades da comunicação global. Talvez ter um blog. Com o Cristo crucificado ao fundo e posts em prol da tolerância. Mas, isto é o de menos. Importantíssimo para chegar a Papa é ser um manancial de virtudes.

(A exibição das virtudes humanas nos jornais e tevês tem-me estapeado nos últimos dias, estão em todos os cantos, gritando sua pureza em detrimento de meus defeitos.)

Perdoem-me as senhoras católicas, aliás, creio que a partir de hoje pedirei a elas perdão em todas as minhas colunas, mas não vejo diferença entre essa agitação em volta do Papa e de uma santa celebridade criada pela mídia, como o Jean Willys do Big Brother Brasil. Um cordeiro sacrificado, exposto, como símbolo da bem-aventurança, da moral e da bondade. Constrói-se um destes com técnicas publicitárias: o apresentador do telejornal muda discretamente o tom de voz, transita entre o "também sou humano e estou quase chorando" e o "há pessoas boas no mundo, vejam, amigos, que exemplo". Um filminho conta vida e as dificuldades passadas. A difícil época da faculdade ao som de "Coração de Estudante", ou seu similar em italiano, inglês ou polonês. Nós, em casa, sentimos um reconforto, como se houvesse ainda alguma esperança para o mundo cão. Pessoas boas nos emocionam, confesso que no dia da morte do Papa, tive por instantes os olhos rasos d'água. A mesma reação que tive quando Jean ganhou o Big Brother, meu conhecido e vergonhosamente assumido programa de televisão predileto, exatamente a mesma.

Esgotado, cansado, doente, numa das últimas aparições na janela do hospital, temi que um dos acessores fosse levantar santa mão papal por algum fio invisível para que ele abençoasse a multidão. Como temi que Jean Willys fosse dizer em alto e bom som "quero voltar a ser mortal!" quando, forçado pelo contrato com a Globo, com olhos submissos, sem encarar a câmera, precisou fazer uma cena ridícula no programa Casseta e Planeta. Deve ser duro ser um exemplo para a humanidade. Deve cansar um homem. Convém lembrar: Karol Wojtyla era um homem.

Um dia, oferecerei meu corpo em sacrifício, como exemplo para a humanidade. Nem sequer peço um palácio no Vaticano para morar, que aqueles me parecem gelados. Dêem-me um bom homem de marketing, o William Bonner com a voz embargada e um belo fundo musical. Mostrarão meu negro passado com drogas, outras lutas internas, meu presente como mãe dedicada e amorosa. Nas televisões, as cenas de minha vida em que perdoei meus inimigos, intercaladas com as do Papa perdoando o atirador e o Jean Willys perdoando Sammy. As pessoas todas, sem mais ídolos, me amariam.

Eu não iria tão longe quanto o Papa, admiro-o pela persistência. Abaixaria os olhos, sim, como o Jean, quando perguntado "como se sentia em ser um exemplo para o Brasil e um orgulho para sua mãe". Abaixaria meus olhos, envergonhada de minha virtude.

Lar, doce lar
"E agora, deixa-me mostrar, por meio de uma comparação, até que ponto nossa natureza humana vive banhada em luz ou mergulhada em sombras. Vê! Seres humanos vivendo em um abrigo subterrâneo, uma caverna, cuja boca se abre para a luz, que a atinge em toda a extensão. Aí sempre viveram, desde crianças, tendo as pernas e o pescoço acorrentados, de modo que não podem mover-se, e apenas vêem o que está à sua frente, uma vez que as correntes os impedem de virar a cabeça.

Acima e por trás deles, um fogo arde a certa distância e, entre o fogo e os prisioneiros, a uma altura mais elevada, passa um caminho. Se olhares bem, verás uma parede baixa que se ergue ao longo desse caminho, como se fosse um anteparo que os animadores de marionetes usam para esconder-se enquanto exibem os bonecos.

[...] Pois esses seres são como nós. Vêem apenas suas próprias sombras, ou as sombras uns dos outros, que o fogo projeta na parede que lhes fica à frente."

(Platão, República, Livro 7)

(Tateio na escuridão, encontro o elo quebrado. Está da mesma maneira que o deixei. E a pedra afiada que havia usado para quebrar a corrente, uso para abrir um novo elo e prender-me novamente. Nada parece ter mudado, eles continuam assistindo ao teatro das sombras na parede, um pouco anestesiados. Alguns babam. Ajeito a coluna na pedra úmida, estive com saudades daqui. Nada encontrei de diverso entre o teatro das sombras e o mundo das idéias. Na verdade, prefiro as sombras. Dá menos trabalho: é só sentar e assistir.)

- E aí, como foi?

Era Robert Crumb, que também tinha voltado.

- Tá pior, Crumb, agora só há gente virtuosa.
- Triste. E a música?
- Foi-se.
- Agora eles dançam aquelas coisas.
- Chamam a si mesmos de "cena musical". E a você de "ícone da contra-cultura".

- Damn it! E o Bruce Springsteen, morreu?
- Nada. Até se multiplicou. Em George Michael, Lenny Kravitz, Felipe Dylon.
- Quem é Felipe Dylon?
- Deixa pra lá, Crumb... Trouxe o banjo?
- Yeah.

Ele toca Howlin' Wolf, "Driving this Highway", choramos.

Rec, rec, rec.

- Ei, Crumb, você despertou um, parece que está tentando soltar a corrente.
- Deixa.
- Coitado. Tá indo lá pra fora.
- Ótimo. Estou precisando mesmo de uma corrente extra, nos pés. Sabe como é, melhor prevenir...

Blues, de Robert Crumb
Crumb é impaciente e imoral. Odeia com fervor a dança e a música pop. O crítico mais ácido da América faz em Blues a definitiva homenagem à velha música negra norte-americana. Os malditos bluesmen que fizeram pactos com o demônio nas encruzilhadas, um homem negro e alto que afinava os instrumentos como ninguém, ressuscitam sua vida viciada no traço sujo de Crumb. Charley Patton, beberrão e violento, morre anônimo e ouvindo a voz da morte em delírios. Mas deixa a melhor música do mundo para os bons. A edição da Conrad é perfeita: cores, papel e cheiro que me fizeram fazer uma prece de agradecimento. Não às virtudes de algum Papa, nem à moral inatacável de Jean Willys. À Crumb, o infernal Crumb.

Para ir além





Andréa Trompczynski
São Mateus do Sul, 11/4/2005

 

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