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Quarta-feira, 13/4/2005
Para amar Los Angeles
Daniela Sandler

Surpresa, ouvi o casal de norte-americanos, de Los Angeles, exclamar: "Como São Paulo tem construções bonitas! Quantos prédios tão interessantes!" Eles tinham visto a Berrini, Moema, os Jardins. Eu pensei que estavam de troça. Mas não havia ironia: estavam mesmo encantados. Já faz uns oito anos e, nesse meio tempo, vim parar nos Estados Unidos; há seis meses moro na Califórnia. Trabalho em Los Angeles desde janeiro. E, no meu primeiro dia de trabalho, dentro do ônibus que corta a cidade seguindo sempre pelo célebre Sunset Boulevard, do centro ao extremo oeste, entendi finalmente por que o casal angeleño achou os edifícios paulistanos tão belos. Porque Los Angeles é feia.

Falando assim até parece preconceito, ou juízo de valor infundado. Afinal, a cidade não é homogênea, e contém belezas de mistura com feiúras como qualquer outra cidade do mundo. Além do que, obviamente, o belo é relativo - e o feio, muitas vezes, pode ser muito mais sedutor. Mas em Los Angeles as belezas se enfronham em ostentação agressiva, ou se dissolvem no cinza da poluição. E o que é feio salta aos olhos com vigor insuspeito, como de vingança. Em muitos trechos, Los Angeles lembra São Paulo, mas a falsa familiaridade é uma armadilha: a sensação de reconhecimento aparente é seguida de uma estranheza maior ainda. Imagine que você está andando na Paulista e vê uma amiga querida. Você se aproxima de braços já alçados para o abraço, já sorrindo para a pessoa conhecida. Chama o nome da pessoa, toca em seu ombro, olha nos olhos e, num átimo, se dá conta: é a pessoa errada, uma desconhecida. Eis você de defesas abertas, com o coração já pronto para um encontro, de cara com uma estranha e com um engano. Tão incômodo quanto a decepção é saber que existe alguém tão imensamente parecido com a pessoa querida, tão familiar, e tão completamente estranho.

A aura do hábito

O caminho para o meu trabalho é pontilhado por sobrados pequenos, irregulares, uns avançando sobre a rua e grudados no vizinho, outros recuados com uma escadinha estreita na lateral; sacadas, janelas com grade, letreiros pintados na fachada cor-de-rosa ou amarela ou azul desbotado. Árvores frondosas no meio. Parece tantas ruas da minha memória, no Aeroporto, Pinheiros, Santo Amaro. Mas o que, nessas ruas paulistanas, havia de cativante ou tranqüilizador - a aura do hábito - aqui não existe. Despidas da familiaridade, essas casas são simplesmente uma coleção de construções mal-ajambradas, umas alquebradas e com manchas de mofo nas quinas, outras vazando a sombra de quartos escuros pelas janelas pequenas sem insolação, letreiros envelhecendo, uma calçada mirrada.

Sim, essa é Sunset Boulevard, a rua mais famosa de Los Angeles, levando do centro a Hollywood e Beverly Hills. A rua é longa, muda, e mais adiante se apruma em hotéis de luxo, clubes noturnos, lojas de roupas caras com vitrinas reluzentes, restaurantes espalhando cadeiras de bistrô parisiense pela calçada ampla e pessoas muito arrumadas, loiras e bonitas flanando como se a manhã de segunda-feira fosse recreio. O sol que bate de viés deixa tudo meio dourado. O comércio chique me faz pensar nos Jardins, na Oscar Freire e na Lorena. Até a banca de revista na esquina ancora a lembrança. Mas o que seria a Oscar Freire se não fosse eu tê-la percorrido com a minha mãe que me levava para o balé ali perto, ou com minha avó que me apresentou às burekas da Z-Deli, ou mais tarde com grandes amigos trocando as confidências da noite passada? Seria Sunset Boulevard? Digo, esse amontoado de lojas vistosas demais, metros e metros de vitrinas de cristal e bares pretensiosos em meio ao caos do trânsito e ao mendigo dormindo no banco de ônibus. Sim, há mendigos em Los Angeles, e, toque de mestre!, descansam em frente aos letreiros dourados do trecho mais metido da cidade.

Não há favelas em Los Angeles, mas há lugares simples e pensões baratas e bairros pobres e violentos, e gente que sacoleja quatro horas em três conduções para chegar ao trabalho. Há áreas como o Morumbi: mansões escondidas na folhagem, ruas curvas subindo morros, muros tapando a visão. Só que os Morumbis de Los Angeles se medem em dólar, cenários da vida luxuosa de artistas de cinema. Prédios de apartamentos como os tais "condomínios de alto-padrão" brasileiros, só que mais altos, mais largos, mais extensos, maiores, supersize. Alinhados, numerosos, formam uma parede gigante que deixa a rua - Wilshire Boulevard - em sombra. Nesse gigantismo, nessa desproporção, essas residências de luxo são, mais que qualquer outra coisa, sinistras.

Os ônibus se arrastam no trânsito grudados ao asfalto como caramujos, lotados: nada de novo. O mar de carros ao redor também é prisioneiro dos semáforos e dos cruzamentos lotados. Mas, em vez de sonhar com uma rede de metrô decente (Los Angeles tem apenas quatro linhas que mal avançam além da área central), os passageiros sonham apenas com o dia em que poderão comprar um carro e poder enfrentar o mesmo trânsito dentro do espaço privado e confortável do automóvel. O trânsito, então, será muito pior.

Cidade vazia

A cidade é espalhada e rasa. Os aglomerados de arranha-céus em downtown ou no centro empresarial de Century City estão distantes uns dos outros, são ilhas; ao redor, pedaços de cidade se esparramam, esparsos, numa imensidão. Por isso, apesar de Los Angeles ser enorme, a sensação é de estar sempre num vazio, em ruas no meio do nada. Não se vê o skyline ao redor, nem vistas de telhados ou mosaicos de janelas. Vê-se o céu, ou a beirada da via expressa elevada, ou os morros verdes em que as ruas parecem acabar abruptamente. Sei que estou numa metrópole, mas sinto estar numa vilazinha.

Los Angeles é uma colcha de retalhos notória. Não tem centro - ou, mais precisamente, tem um centro que não fica exatamente no meio e que não funciona exatamente como centro urbano. É composta de bairros díspares, subúrbios contíguos cada um com seu centrinho, caroços de cidade distribuídos no mapa. Esse mapa se espalha como uma mancha fresca de tinta no papel, comendo as bordas, juntando-se às cidades vizinhas. Conurbação. Região metropolitana. São Paulo também é assim. Mas São Paulo guarda ainda em sua trama a coesão de uma cidade só, ainda que múltipla e cheia de conflitos; já Los Angeles são fragmentos quase autônomos costurados uns aos outros pelo alinhavo frouxo das highways. Essas largas fitas de asfalto povoadas pelo metal dos carros: é isso o que faz dos fragmentos um todo. Mas que raio de cidade é essa feita de pista de trânsito?

Para fazer justiça, há, em cada fragmento, vida de cidade. O centro original, com construções da época em que a região era posse da Espanha, tem gente a pé, barraquinhas vendendo coisas e comidas mexicanas, praça arborizada, rua de pedestres. Os bairros ao redor do centro são redutos de comunidades étnicas: Chinatown, Koreatown, Little Tokyo. O cotidiano nesses bairros - as ruas, a arquitetura, as interações sociais, os estabelecimentos - é vibrante, único, envolvente. Esses bairros têm histórias longas, e continuam se transformando. E há outros encantos. A presença mexicana, misturando o espanhol ao inglês da capital do cinema. As universidades - UCLA (Universidade da Califórnia em Los Angeles) e USC (Universidade da Califórnia do Sul) - e o que as rodeia: estudantes, produção acadêmica, criatividade, áreas jovens e animadas. Os museus de primeira classe, um deles gratuito (o Getty Center). Uma arquitetura modernista maravilhosa e fascinante feita em meados do século vinte por Frank Lloyd Wright, Richard Neutra, Rudolph Schindler.

Toda cidade tem contrastes, contradições e descontinuidades. Em Los Angeles, no entanto, essas descontinuidades não são parte da multiplicidade inevitável. São o próprio tecido constitutivo da cidade. Robert Altman, em Shortcuts, captou com brilho o espírito - ou, melhor dizendo, os espíritos - de Los Angeles, nas diversas histórias entrecortadas e atravessadas dos personagens. E David Lynch, em Mulholland Drive, representou o lado trágico dessa fragmentação. Fora de si, descarnada, projetada nas telas de cinema e na imaginação do mundo, Los Angeles tem uma identidade definida (paraíso cinematográfico ou perdição), e essa identidade parece definir a cidade. Mas um todo, qualquer todo, é mais do que a soma de suas partes. Aqui, neste lugar, só vejo os horizontes vazados das rodovias sob o céu de metal.

Em livro

City of Quartz, de Mike Davis, é uma das análises mais brilhantes e penetrantes sobre Los Angeles.

Só mesmo nesta cidade

O consulado brasileiro fica no mesmo prédio dos escritórios de Larry Flynt, o editor da revista pornográfica Hustler.

Daniela Sandler
Riverside, 13/4/2005

 

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