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Quinta-feira, 14/4/2005
Uma vida bem sucedida?
Humberto Pereira da Silva

Quando olhamos para fora da janela e vemos o mundo, é possível que fiquemos com a sensação de que somos absolutamente estranhos ao que nos cerca, que nosso lugar na ordem cósmica não vai além do de um grão de areia numa vasta praia que se abre para o infinito; é possível também que fiquemos espantados ao darmos conta de que, como grão de areia, ocupamos um lugar na harmonia do mundo.

O Poeta, Fernando Pessoa, em poema famoso - "Tabacaria" -, expressou o sentimento de que apenas nossa pretensão pode nos elevar para além de Esteves, sem metafísica; o mesmo Pessoa, em outro poema famoso - "O guardador de rebanhos" -, disse que há metafísica bastante em não pensar em nada. Entre a insignificância no todo e o deslumbramento no vazio, encontra-se a angustiante questão acerca do que é viver bem, alcançar a felicidade, ter êxito, ter uma vida bem-sucedida.

Um livro com um título indagativo - O que é uma vida bem-sucedida? (Difel, 350 págs.) -, para um olhar desatento, possivelmente se situaria na avalanche de congêneres de auto-ajuda. O autor, o filósofo e educador francês Luc Ferry, apesar de fazer muito barulho na França (é atual Ministro da Cultura), aqui talvez chame a atenção de um ou outro: foi traduzido seu Pensamento 68 em meados dos 80. Bem, mas pelo título de seu livro recente, os "filósofos" profissionais podem torcer o nariz: não está na agenda dos assuntos sérios. Além disso, Luc Ferry, que se inscreve na linhagem dos "neo-reacionários" para Daniel Lindenberg, em Rappel à l'ordre - enquête sur les nouveaux réactionaires, a se considerar pelo título, proporia, para nos situarmos no universo pop, uma visada retrô.

De fato, O que é uma vida bem-sucedida?, publicado na França em 2002, tem um título que no mínimo causa estranheza: trata-se de uma impostura? Conforma-se aos imperativos da publicidade (caminho, aliás, seguido pelos "novos filósofos" franceses)? Ou devemos olhar com cuidado para o que Ferry tem a dizer, num mundo em que falar em vida bem-sucedida soa meio como procurar um manual de auto-ajuda? Devo dizer que, respeitado o espanto inicial para os não-iniciados, a indagação de Luc Ferry é muito mais séria do que possa parecer à primeira vista. Passemos então a exibir o caminho que ele toma para responder à indigesta questão: que é uma vida bem-sucedida?

Vida bem-sucedida e boa vida
Ferry inicia com um balanço da chamada condição moderna, para a qual ele entende que é inevitável pensar no êxito pessoal: o cuidado narcísico e ilimitado do poder, do dinheiro e do reconhecimento alheio. O êxito social caminha pari passu com o culto à performance, que rompe a antiga lógica do sentido da vida em benefício de uma lógica da competição. O que antes era conhecido como "boa vida", que se refletia na busca da felicidade, nos modernos cedeu lugar ao que conhecemos por "vida bem-sucedida". E pensar em "vida bem-sucedida" é trazer à tona a possibilidade de fracasso: a contrapartida do êxito social num mundo que se move pelos imperativos do consumo, da fetichização da forma mercadoria.

Num mundo em que a transcendência perdeu lugar, dissimula-se o tédio, a inveja, a infelicidade: o êxito dos "Outros" é a prova de que "Eu" perdi o percurso da vida e sinal de que sou fracassado porque perdi o jogo da competição, sou um paria na lógica do consumo, num espaço como um shopping center. Num mundo em que a busca pela "boa vida" perdeu sentido, infelicidade e fracasso são palavras correlatas. Por isso, Rousseau, que torcia o nariz para o mundo moderno, já apontava para os devaneios da infelicidade da condição do homem moderno, quando sustentava que nele "os indivíduos são sozinhos quando estão com outras pessoas e estão sempre acompanhados delas na solidão": isolados, no primeiro caso, pois têm nos outros um concorrente inequívoco; próximos, no segundo, pois recordam que superar os outros é um imperativo para que não se vejam no espelho como fracassados.

Feito o balanço da condição do homem moderno, Ferry apresenta as questões que lhe parecem prementes: as interrogações sobre o sentido de uma "boa vida" tornaram-se irremediavelmente antiquadas num mundo em que tudo concorre para fazer da imanência o fator mais radical da existência humana? A antiga questão da "boa vida" teria desaparecido como outra vítima do mundo da técnica? A resposta dada por Ferry pode surpreender num primeiro momento: ele mostra que a questão da "boa vida" não é um corpo estranho às inquirições contemporâneas; ela apenas deve ser expressa de modo diverso daquela que os antigos entendiam. O percurso desenvolvido por ele, portanto, será o de mostrar como a questão da "boa vida" se apresenta para os contemporâneos e, ao mesmo tempo, como o que hoje entendemos por "boa vida" se diferencia daquilo que antes era uma "boa vida".

Para isso, ele dá os seguintes passos: examina a idéia de vida mais intensa para Nietzsche; a sabedoria dos antigos através da idéia de uma vida em harmonia com a ordem cósmica, quando toma por modelo o estoicismo; a questão das doutrinas da salvação - tanto para o platonismo de Santo Agostinho quanto para o aristotelismo de Santo Tomas - e o renascimento da filosofia laica, que deriva na humanização da "boa vida"; e, finalmente, a "boa vida" em harmonia com a condição humana, quando defende que a "boa vida" deve ser pensada a partir da "modernização" do religioso e da "divinização" do humano.

Nietzsche, os estóicos, o cristianismo e o mundo laico
O que chama a atenção de imediato no percurso de Ferry é que ele tem como ponto de partida Nietzsche, o pensador que talvez mais se afine com a moral moderna de que devemos superar os valores tradicionais de transcendência e harmonia e vivermos intensamente o momento, criando e destruindo valores. De fato, Nietzsche é o filósofo que preconiza a morte de Deus; é aquele para o qual fazer filosofia deve ser algo como brandir um martelo na direção de todas as convenções.

Ocorre que, como mostra Ferry, a assimilação de Nietzsche pelo mundo moderno não deve ser feita sem uma melhor apreciação de suas teses fundamentais, pois ele não abandona a idéia de uma "boa vida" em proveito de uma "vida bem-sucedida" (Nietzsche também é aquele que se recusa a jogar com dados: o jogo, a competição, só faz sentido para um escravo). Os critérios para uma "boa vida" devem ser encontrados na arte, condição de conhecimento mais elevado: a eternidade está no instante, que deve ser vivido intensamente, e aquele que vive intensamente o instante é o único responsável pelo seu destino.

Nietzsche, como sabemos, rompe com a tradição da filosofia que vem desde Sócrates. E, por conta disso, Ferry mostra como o ideal de saber em Nietzsche se opõe ao dos antigos, no que se refere ao sentido da vida, à "boa vida", à felicidade: para os antigos uma "boa vida" consistia em viver em harmonia com a ordem cósmica. Daí que questões como as da morte, da imortalidade da alma e da salvação tenham ocupado o centro das atenções de Platão, neoplatônicos e estóicos.

O caso dos antigos que mais desperta interesse em Ferry, para fazer contraponto a Nietzsche, é o dos estóicos, cujo pensamento pode ser assim resumido: toda atividade filosófica deve permitir que cada indivíduo viva e morra como um Deus. Com isso, os estóicos sustentavam que a sabedoria deve levar os homens a perceberem seu vínculo com todos os outros em meio à harmonia cósmica e, com isso, alcançar a serenidade e a consciência de que, embora mortal num certo sentido (a mortalidade do corpo) o homem não morre totalmente.

Todos os estóicos concordam num ponto: o homem não deve desviar-se da natureza e sim se conformar com sua lei; nisso reside a verdadeira sabedoria. Mas isso não implica numa resignação que coloque em xeque a liberdade humana. O ponto fundamental para os estóicos, quando se considera a "boa vida", é: na ordem cósmica há coisas que dependem e outras que não dependem de nós. Nossa infelicidade resulta das paixões para adquirir o que não depende de nós, como bens materiais, prazer, dor, beleza, glória, etc; mas há uma coisa que depende de nós e que nada pode nos arrancar: a vontade de fazer o bem e agir de acordo com a razão.

Toda a nossa infelicidade, portanto, provém do fato de que não distinguimos direito entre o que depende e o que não depende de nós: somos constantemente assolados pelas paixões e permanecemos prisioneiros do passado e na ilusão de um futuro cheio de esperanças. Para os estóicos, para alcançarmos a felicidade - uma "boa vida" em suma -, devemos escapar a uma vida que se volte para a projeção de um futuro qualquer. As dificuldades da vida e a tragédia da condição humana não são modificadas pela esperança de uma vida melhor - na fórmula feliz de Sêneca, "enquanto esperamos viver, a vida passa".

A base do pensamento nietzscheano também está em forte oposição à filosofia cristã que se desenvolve do neoplatonismo, em Santo Agostinho, e do aristotelismo, em Santo Tomas de Aquino. Como vimos, para os estóicos a infelicidade humana é decorrência de um desajuste com a ordem cósmica: não distinguimos entre o que depende e o que não depende de nós; não agimos de acordo com a razão. Ora, a razão, o logos, é o ponto de partida para compreendermos o ideal de "boa vida" estóico; será também o ponto de partida da filosofia cristã, como expresso nos versos iniciais do Evangelho de João.

Mas, entre estóicos e cristãos opera-se uma mudança fundamental. Com o termo logos não mais se designará a estrutura harmoniosa e racional do mundo, a divina organização do cosmo em seu conjunto, mas um humano: Jesus Cristo. No cristianismo o logos tornou-se pessoal e, com isso, instaura-se uma nova visão do mundo, do destino, da salvação e da felicidade, portanto, de uma "boa vida". No coração da doutrina cristã da salvação está o amor cristão (ágape) - tirado do verbo grego agapan, significa simplesmente "querer bem" e que se pode traduzir por "caridade". E a caridade culmina no amor pelo próximo, um amor sem apego. Para o cristianismo é na vida voltada à caridade que se atinge a "boa vida" e não no apego aos bens do mundo.

Depois de mostrar como Nietzsche se opõe a estóicos e cristãos no que se refere à "boa vida", Ferry passa a comparar o pensamento nietzscheano ao que se desenvolve no início do renascimento com as revoluções científicas, o chamado pensamento laico. Ferry mostrar que tanto a sabedoria antiga quanto o cristianismo sofreram um abalo profundo com a passagem do mundo fechado (cíclico ou teleológico) para o universo infinito. Com a ciência moderna, o mundo se desencanta, pois o que antes era concebido como um todo finito e bem ordenado foi substituído por um universo indefinido, que não comporta nenhuma hierarquia natural.

O que legitimava a confiança estóica no destino era, como vimos, a convicção íntima de que a providência era boa, de que o cosmo era justo; o que legitimava a confiança cristã no destino era a fé de que pela caridade podia-se salvar da danação eterna. É esse tipo de raciocínio que a revolução científica progressivamente colocará fim: nada pode permitir pensar que acontecimentos naturais são fruto de alguma providência.

Com isso, uma das convicções que nos chega desde as transformações da revolução científica é que a civilização, a paz e a democracia não são naturais, pois se trata de conquistas que se impõem sob a forma do dever e do imperativo. Os valores não são mais domínios do ser, não residem mais na natureza, mas dependem de um dever-ser, de um ideal que está por vir, e não de uma realidade harmoniosa e boa, sempre dada.

Disso resulta outra perspectiva sobre o papel da religião na vida das pessoas: longe de ser a verdade suprema da vida humana, a fé seria o acúmulo de ilusões. Por isso, a "boa vida" passa a ser pensada mais nos termos de uma "vida bem-sucedida": feliz é aquele que acumula riquezas. Não obstante, não é que o religioso tenha desaparecido do mundo laico, é que a crença ficou restrita à esfera da opinião do indivíduo. Isso não significa, contudo - eis a tese fundamental de Luc Ferry, que se opõe a Nietzsche - que os princípios transcendentais foram totalmente varridos do mundo moderno. As interrogações sobre o sentido da vida, do que é uma "boa vida", permanecem.

Ferry sustenta que é necessário pensar nas interrogações sobre a "boa vida" à margem das religiões tradicionais e fora dos limites do materialismo. Para restituirmos a questão sobre a "boa vida" deve-se pensar nos termos de uma "transcendência na imanência": o mundo humano, a humanidade, é o horizonte. A "boa vida" consiste em perceber as singularidades humanas e nesse ponto Ferry não se afasta de Nietzsche, que faz coincidir em si mesma a maior diversidade possível de experiências que engrandecem nosso ponto de vista sobre a humanidade; e também fica em débito com Montaigne: "porque era ele, porque era eu", e não absolutamente "porque ele era belo, forte, inteligente, corajoso...".

É na singularidade, o aqui e agora, que nos permite fazer escolas e nas escolhas singulares reside o ideal de felicidade, de "boa vida". A singularidade para Ferry não deve ser entendida como uma particularidade que se detém no particular, mas com uma reconciliação com o universal e é a grande obra de arte que nos oferece o modelo acabado desse universal: não inventamos a beleza de uma suíte de Bach nem a de uma paisagem de Wateau, contentamo-nos em descobri-las, naquilo justamente que escapa à nossa subjetividade.

***

Ferry segue um caminho para mostrar que os modernos perderam o sentido de uma "boa vida" e a substituíram pela "vida bem-sucedida"; para mostrar também que ainda faz sentido retomar a velha questão da "boa vida" se entendermos as singularidades que cercam nossa existência. No título que dá ao livro, então, há algo de inevitavelmente provocativo: à interrogação o autor procura recompor para nosso mundo globalizado o quanto se perdeu com as exigências de êxito pessoal e de performance. No título do livro, igualmente, há algo de inevitavelmente publicitário. Luc Ferry joga com símbolos e expectativas para chamar a atenção, mas o que ele propõe está distante do que um leitor desatento poderia entender como auto-ajuda. A sagacidade do título, para mim, merece ser destacada: Ferry joga com as possibilidades de seduzir aquele que num primeiro momento teria poucas razões para uma caminhada pela filosofia desde os estóicos até Nietzsche.

Dito isso, o que resta então é uma discussão sobre o rumo tomado por ele: a "boa vida" como harmonia com a condição humana. A esse respeito, nos limites de uma resenha, não cabe uma posição. Que especialistas pensem-na, introduzam-na em suas agendas em colóquios e simpósios. De qualquer forma, o grande mérito de O que é uma vida bem-sucedida? está em lembrar o quanto se perde quando se coloca para baixo do tapete questões sobre a "boa vida".

Sobre a edição que a Difel dispõe ao leitor, faço duas observações. Para um livro longo e cheio de referências, faltou tanto uma bibliografia dos livros citados no final, quanto um índice onomástico; essas faltas dificultam uma melhor apreciação tanto para um leitor curioso, quanto para uma leitura compenetrada. Faltou ainda uma melhor apresentação do autor: quem é Luc Ferry e que lugar ocupa no pensamento contemporâneo? Levando em conta a importância do livro, a edição podia ser mais cuidada.

Um último ponto a ser destacado é que O que é uma vida bem-sucedida? talvez aborreça quem não tenha paciência para acompanhar um texto caudaloso e cheio de zigue-zagues argumentativos. Vale para esses um recado: o caminho do saber é cheio de pedras, mas é o caminho... Luc Ferry legou uma obra que merece uma visada com cuidado. Para o bem ou para o mal ele se coloca no centro de importantes debates contemporâneos sobre ética - nesse ponto, ao lado de pensadores controversos como Peter Singer, com sua "Ética prática" e Peter Sloterdijk, com suas "Regras para o parque humano".

Para ir além





Humberto Pereira da Silva
São Paulo, 14/4/2005

 

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