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Quarta-feira, 4/5/2005
Pessoas digitais
Ana Elisa Ribeiro

Você que lê o Digestivo Cultural provavelmente lê mais do que um bilhetinho de namorada e escreve mais do que apenas o seu nome. Também já deve ter passado daquela fase em que é preciso pintar o dedão de preto e esfregá-lo no papel. Pois bem, é assim que as pessoas deixam de ser analfabetas, mas isso não é suficiente para que sejam letradas.

Letrado não é aquela pessoa que lê muitos livros de literatura e sabe uns trechos de Macbeth de cor. Letramento é um conceito da área de educação que ganhou as escolas e tem sido tratado com muita deferência, especialmente pelos professores de Português.

O letramento, especialmente discutido pela Profa. Magda Becker Soares, vem oferecer um gradiente de versatilidade do indivíduo na lide com textos de gêneros diversos. Não basta assinar o nome para ser letrado, mas também não se deixa de sê-lo caso sejam conhecidos alguns parâmetros das produções textuais orais e escritas que circulam na sociedade.

Para ser letrado, é preciso saber passear por entre os textos, lê-los conforme as condições para as quais e nas quais foram produzidos. Também é necessário saber estabelecer a comunicação por meio de gêneros diversificados de textos, com funções e aparatos de produção diversos.

Com o computador e a Internet, as pessoas inventaram, pelo uso, novas formas de interagir. Junto com isso, emergiram novos gêneros de texto, embora familiares, já que costumam ser parentes de gêneros mais antigos. O e-mail guarda os genes da carta; o chat aproveita aspectos da conversa telefônica; as reportagens ganham uma fragmentação facilitadora para a leitura em tela. E as pessoas que têm acesso à rede começam a navegar pelo letramento digital, em que textos têm especificidades desenvolvidas para o novo meio.

A perspectiva histórica esclarece que as interfaces do computador foram desenvolvidas à semelhança dos materiais impressos. Exemplos disso são a "página" em branco do Word e os ícones que representam lixeiras e pastas. Essa representação foi pensada para aproximar o leitor da máquina, e não para causar nele a sensação da ignorância. O teclado do computador guardou semelhanças com o teclado da máquina de datilografar; a área de trabalho foi feita com ícones justamente para quem não sabe ler. E assim caminharam os projetos que procuravam a adesão do leitor.

Discutir letramento é, obrigatoriamente, também pensar as práticas de leitura dos suportes digitais, que ainda estão por serem estabelecidas nos usos sociais que fizermos delas. Na escola, o professor se depara com dois extremos: o aluno que não aprendeu a usar as máquinas e o aluno que só sabe usá-las. Dois extremos igualmente importantes e cujas falhas começam a aparecer. De um lado, indivíduos que não conhecem as possibilidades da rede; de outro, indivíduos que trocaram a manipulação e a pesquisa pelas respostas prontas do buscador Google. O resultado, no entanto, é o mesmo: pessoas que não sabem ler e selecionar informação.

A pesquisa na escola, há aproximadamente vinte anos, era pedir aos alunos que procurassem nas enciclopédias famosas um verbete de biologia ou a vida de um cientista. Os garotos e garotas daquela época sabiam procurar em índices remissivos e navegavam pelos verbetes com bastante desenvoltura. Assim que encontravam o objeto de pesquisa, copiavam caprichosamente no caderno e entregavam à professora, que dava visto em 30 ou 40 trabalhos idênticos. Não se ensinava a pensar, a triar, a procurar com a inteligência, a fazer perguntas específicas e tirar as respostas do geral, a organizar, a escrever autoralmente.

Hoje em dia, a escola pede a pesquisa e o aluno não tem sequer o trabalho de copiar. A chave de tudo está na Internet, que oferece trabalhos prontos para impressão. Esses alunos também não triam, não selecionam, não pensam autonomamente e, em geral, são incapazes da escrita autoral. A tecnologia muda, mas a escola continua a mesma.

Letramento é empregar todas as fontes, saber lê-las e saber organizar o que é de interesse de cada um ou o que é pertinente a uma proposta de estudo e pesquisa.

Meninos "analógicos" não sabem buscar com instrumentos eletrônicos; meninos "digitais" precisam aprender a navegar uma enciclopédia, um sumário de revista e as páginas de um livro. Uns não sabem o que é verbete e nem que a lombada é tão importante em alguns tipos de livro de consulta; outros não sabem o que é um link e como funciona um sistema de busca digital. De qualquer forma, importante é não separar as mídias como se fossem estanques e levar as pessoas a navegar por todo tipo de suporte, todo gênero de texto. Cada indivíduo deve alcançar o letramento, seja ele no papel ou no monitor.

Casilla del diablo
"ciempiés, ey!" E eu corria, corria, corria, ia em direção à travessa estreita e virava à direita, outra travessa, mais uma e então pensava que estaria na avenida de seis pistas. Àquela hora não havia carros e nem pessoas. Poderia correr e correr até me livrar dele. "ciempiés! Ey!". Logo atrás de mim. Corria mais do que eu e vinha célere em direção à minha nuca. Nem sei se era mesmo homem. Talvez fosse um travesti. As unhas eram grandes como as da minha avó, a que era pomba-gira. Os cabelos dele são compridos e cheiram mal. "Pára". Não sei español. Não podia assistir sequer aos seriados da tevê a cabo. Corro, corro, corro e sei que ele quer me pegar e eu tenho razão para correr muito. A próxima travessa me deixa perto da Santa Casa de Misericórdia. Diz o porteiro do prédio que aquilo lá é um hospital. Não dá abrigo às almas penadas e nem é refúgio de quem arranhou os brios do santo de cabeça. "Ciempiés". Ele sequer perde o fôlego. Corro muito para entrar num bar, qualquer porta aberta que me abrigue por uns instantes. Posso despistá-lo. Posso me travestir de dona louca ou de santa desatadora de nós. A esta hora da madrugada até mesmo os bandidos já estão podres de bêbados. "La finca, ey". Tem voz de mexicano, mas sei que o diabo é chileno, como Neruda, eu acho. Dizia minha mãe que o diabo é poeta. Deus deve ser editor. "Finca la linda!". Corro, corro, tropeço, trôpego novamente, tropeço, mas não caio. Corro e quase não respiro. Corro e atravesso avenidas. Nem há trânsito por aqui. As lendas desta cidade incluem o capeta do Vilarinho. Dizem que ele vem para atacar meninas insinuantes. Mas não sou insinuante, nem menina. "Finca la linda!" E se eu parasse? E se eu o mirasse nas pupilas? E se o perguntasse o que quer? Ele quase me alcança. Eu corro mais. Mais uma rua. Mais duas e estarei em casa. Mas sempre me disseram que o diabo tinha patas e chifres. E talvez fosse rabudo e vermelho como um porco velho. Não imaginei que ele fosse chileno. Argentino já me havia passado pela cabeça. "Finca!" Um carro, dois. Será que ninguém vê? Ele me pega pelo pé. Rolamos no chão até esfolarmos as testas. Não tem chifres nem olhos de fogo. Mas chama-se Ignácio e me diz que ha me capturado e que "soy el guardián del diablo".

Nota do Editor
O conto (acima) foi originalmente publicado no especial "Cramulhão", da revista Patife, editada por Ana Elisa Ribeiro junto com Jorge Rocha e George Cardoso.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 4/5/2005

 

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