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Quinta-feira, 5/5/2005
A importância do nome das coisas
Adriana Baggio

Ao dar nome às coisas, o ser humano se apropria delas. Elas passam a fazer parte da cultura, do cotidiano, das posses das pessoas. Hoje em dia, isso é bem mais difícil. Quando nascemos, a maioria das coisas com as quais teremos contato em nossa vida já tem um nome definido.

Na infância, ainda buscamos encontrar uma lógica entre o nome e a coisa a que ele se refere. Apesar de desqualificarem estas e outras atitudes normais das crianças, elas estão em um nível muito mais avançado do que os adultos, que já tiveram a oportunidade de estudar bastante, ler diversos livros, assistir muitas aulas, ter contato com os maiores pensadores da humanidade e mesmo assim não pensam sobre as palavras. Afinal, ao questionar porque algo se chama assim ou assado, as crianças retomam um dos grandes dilemas da humanidade. De Platão a Michel Foucault, essa relação entre o nome e ao que ele se refere tem sido investigada por pessoas muito sábias e inteligentes, como lingüistas, filósofos e crianças.

Mas como as coisas que conhecemos passaram a ter esses nomes? Ultimamente, as novas palavras são formadas através de junções, reduções, adaptações, utilizações em outros contextos. Essas daí, por sua vez, surgiram de outras, muito mais antigas, que têm origem nas primeiras tentativas de comunicação entre os homens. Nessa época remota, talvez as palavras tenham sido formadas pelos sons que cada objeto, animal ou pessoa emitia. "Mãe" não lembra os primeiros sons dos bebês ao mamar?

Fui atrás de algumas referências para elaborar essa coluna e dar um pouco mais de consistência às minhas reflexões. Lembrei de duas leituras que têm tudo a ver com esse assunto, mas não consegui encontrar os textos. Uma angústia isso de tentar lembrar de alguma coisa e não poder achar o lugar onde a informação está disponível. Revirei a pasta com os "xerox" de aulas dos mais diversos cursos e busquei na memória o nome de um livro para criança em que um menino dava nomes diferentes aos objetos. Santa internet, encontrei em um blog a menção à história infantil, mas não tive a mesma sorte com o texto acadêmico.

O Marcelo de Marcelo, Marmelo, Martelo, escrito em 1976 por Ruth Rocha, vivia se indagando sobre o nome das coisas: "Por que a colher se chama colher e não mexedor?". Para Marcelo, o nome deveria ter a ver com o objeto. Ou seja, a forma deve ter relação com o conteúdo. Mesmo que, para Marcelo, a forma fosse a função da colher e não seu desenho ou o material do qual é feita.

A outra referência, que eu busquei e não consegui encontrar (se alguém reconhecer, por favor indique a origem), é sobre a relação entre as palavras e as características do que elas significam. Grande parte delas parece carregar em seus sons e letras o espírito do que designam. No entanto, isso não acontece com outras. Não lembro quem argumentou que as palavras noite e dia em francês, por exemplo, não combinam com o referente. Nuit é uma palavra aberta, infinita, clara como o dia. Jour tem um som fechado, abafado, que se encerra em um sussurro, muito mais adequado para definir a escuridão do que a luz. Acho que em português as coisas parecem estar no lugar certo: dia é claro, aberto, e noite é mais fechada, escura.

Até Santo Agostinho, em suas Confissões, ficou intrigado com a origem das palavras. De onde elas vêm se, mesmo nunca tendo visto o objeto a que se referem, ele consegue saber do que se trata? Para o filósofo, as palavras são obra de Deus e já existem dentro de nós, fazem parte de nossa alma. Ele também argumenta que as pessoas relacionam as palavras e as coisas de forma arbitrária. Vemos alguém chamar uma xícara de xícara e decoramos sua designação. Como não sabemos a origem, não pensamos muito sobre essa relação. Apenas aceitamos como mais uma das inevitáveis regras necessárias de se aprender. Naturalmente, não paramos para perceber a beleza das palavras e os possíveis significados que as formas podem agregar ao conteúdo. As palavras acabam banalizadas e não se presta mais atenção nelas.

É possível ver as palavras de uma maneira muito mais rica em certas manifestações, como a literatura e a publicidade. Que não me crucifiquem por colocar arte tão nobre ao lado desta vil atividade. Mas a publicidade empresta da literatura os recursos que a fazem tão atrativa para, é lógico, atingir seus objetivos. Na publicidade, assim como na literatura, o nome das coisas é algo fundamental. Tem até um poema - outra referência que não consigo lembrar! - que fala sobre os nomes diferentes que os anúncios dão para coisas, normalmente tabus, que estamos acostumados a chamar de outro jeito. Menstruação é fluxo, velhice é melhor idade, morte é falta, e por aí vai.

Esse procedimento, o eufemismo, é mais comum do que dar uma de Marcelo, Marmelo, Martelo. Mas uma loja de eletrodomésticos e móveis decidiu inovar e resolveu mudar o nome dos objetos para conseguir se diferenciar em meio aos comerciais tão gritantemente (perdoem-me o trocadilho) parecidos. Você já viu o anúncio do Magazine Luiza? No filme, colchão é chamado de "noite bem dormida"; computador é "família bem informada" e secador de cabelos virou "elogio portátil".

A estratégia desses comerciais é "tangibilizar" o benefício. Traduzindo: com esses novos nomes, a loja mostra o que as pessoas vão ganhar comprando determinado produto. Está tudo relacionado com o tema maior da campanha publicitária, "ser feliz". Ao chamar colher de "mexedor" o Marcelo da Ruth Rocha "tangibilizava" o benefício do objeto, explicitando a sua função. (Será que ele cresceu e virou redator publicitário?) Para conferir os novos nomes para as coisas que você já conhece, dê uma olhadinha no dicionário que a loja preparou...

É gostoso brincar com os nomes das coisas. Mas é preciso lembrar que nem sempre cabe usar a retórica ou outros recursos para deixar o nosso discurso mais atrativo. Algumas coisas têm suas definições muito claras e estabelecidas e não devem ser modificadas, porque é importante que a sua essência seja mantida. Quando o presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti, chama estupro de "acidente", está denominando de "acontecimento casual, fortuito" (Houaiss) um dos piores crimes - atitude deliberada - que se pode cometer contra um ser humano.

Adriana Baggio
Curitiba, 5/5/2005

 

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