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Sexta-feira, 6/5/2005
Medir palavras
Paulo Polzonoff Jr

Faz parte da minha personalidade não medir palavras. Isto é bom e é ruim. A maioria das pessoas conhece o lado ruim disso. Não meço palavras para dizer o quanto detestei um livro, por exemplo. Mas há um lado bom em não medir palavras. Quando gosto muito de alguém, digo. Não hesito em estender às pessoas queridas e admiráveis um tapete vermelho de palavras. Faz bem para mim e, tenho certeza, também faz bem para elas. Ou me engano?

Esta não é a regra no mundo. Repare como a gente vive medindo as palavras que usa até mesmo para elogiar. Ou eu deveria dizer sobretudo para elogiar. A nossa sociedade (este fantasma de sete bilhões de tentáculos) suprimiu as boas palavras e tentou impor uma sublimação dos sentimentos mais aflorados - bem ao estilo vitoriano, que se julgava morto. Eu posso amá-lo, mas não convém dizer. É triste.

Cá para nós, eu acho que o mundo seria muito melhor se não medíssemos as palavras para dizer o quanto amamos, admiramos, somos gratos e estimamos determinada pessoa. Que eu saiba, este tipo de agrado não tem contra-indicação. Ao menos eu jamais conheci alguém que se sentisse ofendido com palavras de afeto.

No final do ano passado, por exemplo, eu me senti invadido por uma onda de afeto por algumas pessoas. Nunca escondi de ninguém que 2004 foi um ano difícil para mim. Por isso, achei justo que, ao final do ano, eu agradecesse às pessoas que fizeram daquele ano um pouco menos penoso. Peguei o telefone e disquei. Disse, mas foi difícil. Não que as palavras me saíssem com dificuldade. Eu tenho extrema facilidade com as tais. Posso até gaguejar um pouco, mas eu encontro sempre uma boa palavra no mar das minhas idéias. A dificuldade estava em imaginar como o outro recebia minhas palavras.

Disse que jamais conheci alguém que se sentisse ofendido com palavras de afeto. Menti. Conheço, sim, várias pessoas que se sentem mais do que incomodadas. É como se as palavras de afeto as ferissem. Desvio de caráter, você há de julgar. Não. Acho que é um efeito de uma sociedade que privilegia as coisas palpáveis. A velha história do ter em detrimento do ser. As pessoas acabam se protegendo demais de possíveis aproveitadores. E, na obsessão, acabam por criar uma carapaça intransponível. É mais comum do que se imagina.

Veja se não é o caso das relações amorosas. Várias vezes me envolvi com mulheres que não diziam o que sentiam - ainda que sentissem. Do mesmo modo, há mulheres que não vêem com bons olhos o fato de o homem dizer que a ama ou que ao menos se importa muito com ela. As relações amorosas mudernas são marcadas por silêncios ou supressões da palavra que geralmente resultam em equívocos e ruína. A mim parece que há uma lógica aí.

Particularmente, eu sofro por viver num tempo em que as palavras têm de ser milimetricamente medidas. Gosto de falar e gosto de me expressar. Às vezes eu me arrependo, é verdade. A pessoa que admirava ontem pode ter me decepcionado e então eu já não a admiro na medida da véspera. Mas eu pertenço ao coro dos que só se arrependem do que não dizem. Felizmente, vivo com alguém que não mede as palavras também. E nós somos felizes inundados com carinhos verbais diários.

Voltando. Dizia eu que no final de 2004 liguei para algumas pessoas para dizer o quanto elas foram importantes para mim naquele ano. As reações foram simples: alguns entenderam, outros não. Mas pior mesmo foi o tremor na minha voz. Eu tinha medo de ser julgado por minhas palavras como alguém que diz aqui sem dar o devido valor às palavras. E o que eu fazia, pasmem!, era justamente o oposto.

Hoje eu vivi este "drama" novamente. Sou um homem que fala. Se eu admiro, falo. Se agradeço, agradeço. Se estou tremendamente emocionado porque alguém depositou uma confiança extraordinária em mim, digo. Eu sou um homem emotivo. Não meço as palavras, especialmente nos bons momentos. E não quero ter jamais de suprimir os bons sentimentos que, ao se tornarem verbos, transformam-se também em verdades.

Portanto, se um dia eu ligar ou escrever dizendo obrigado ou ainda se, numa mesa de bar, disser que muito bom tê-los como amigos; se eu levantar o copo num brinde exagerado por uma conquista mínima ou se eu fizer um interurbano para agradecer pelo ano de convivência, acredite em mim. É de coração. Um coração que bate exagerado, que não tem vergonha da pieguice e que acredita que uma palavra não dita é, muitas vezes, uma palavra desperdiçada.

Uma idéia distorcida de liberdade
Faço aquele tipo que acredita na liberdade de um jeito muito patético, isto é, totalmente. O preço que pago por isso é a impopularidade. Não se trata, de modo algum, de uma virtude de mártir. Na verdade, é o castigo pela extrema burrice de achar que posso dizer o que penso impunemente.

Posso dizer, por isso, que eu sou um pouco anarquista. Dentro daquela idéia de anarquismo como um modo de vida no qual cada um pensa e age por si, sem controle externo. Mas minha utopia tem muito pouco de rebelde; trata-se de ignorância mesmo. Ou, por outra, de uma surdez, porque já ouvi os conselhos de Polônio umas dez vezes - e não o assimilei.

A história das minhas palavras livres é antiga e remonta aos primórdios da minha educação madura, ainda no colégio de freiras. Nas aulas de religião, eu pateticamente acreditava nas palavras da professora que dizia que não queria impor, e sim discutir. Com perguntas escabrosas, não demorou para que eu fosse sutilmente calado nos debates da aula. Sob a pena de ser reprovado, ainda que minhas notas em português e matemática sempre fossem as máximas.

Em vez de aprender o valor do silêncio, falei mais e mais durante toda a adolescência. Falta de cinta! Com a cara cheia de espinhas e as idéias cheias de hormônios, passei uns bons anos achando que minha língua afiada era algo a ser venerado pelo público ignaro. E dizia e dizia e dizia. Nunca ninguém me contradisse - o que só meu deu mais confiança para o desastre.

Nesta liberdade toda eu me embriaguei de palavras. Até hoje. Depois que passei a usar a palavra profissionalmente, pensei que teria a liberdade refreada. Nada disso aconteceu. Mas já então eu percebi que era refém da própria liberdade de dizer. Sabe como é: eu gostava de pensar que estava sendo original e subversivo (para usar um termo em desuso), quando, na verdade, eu só fazia repetir as palavras duras de quem não queria se expor.

Há uns poucos anos eu venho freqüentando um grupo de auto-ajuda para me ver livre da idéia de que sou livre para dizer o que penso. Não é fácil. Volta e meia eu ganho umas tantas estrelas na testa e faço discursos pungentes para uma platéia de viciados como eu. Mas as recaídas são inevitáveis. Uma vez na frente do computador e diante de um fato extraordinário, é difícil resistir à compulsão de dizer o que se pensa e o que não se pensa. Sempre com a impressão de que não se corre nenhum risco por isso.

Em casos de morte, a coisa se complica ainda mais, porque não raro o morto é uma pessoa importante para algum leitor incauto. E, ao falar qualquer coisa que abale a suposta honra do defunto, está-se ofendendo o leitor, o que nunca foi nem será jamais minha intenção. Tenho ganas de dizer sempre a todo mundo que a opinião é minha e que jamais quero impor o que quer que seja a ninguém, mas descobri que tal expediente tem um alto grau de rejeição. É como se eu estivesse tentando me desculpar com o mundo. Que não é benevolente.

Foi assim, com o espírito meio alquebrado pelas minhas próprias recentes palavras, que entrei hoje na sala do grupo de auto-ajuda, olhei na cara de cada um de meus companheiros de crença absurda e confessei que tinha caído no erro de dizer o que pensava - mais uma vez. Seguiu-se ao meu discurso um longo ooooooooh!, mas ninguém me reprovou. Chorei. Fiz meu escândalo básico. Me vi transformado numa borracha gigante, capaz de apagar todas as palavras escritas e ditas. Mas nada adiantou.

Hoje eu acordei e fazia sol. As palavras estão todas no papel, para quem quiser ler. Continuo tendo a minha opinião sobre isto e aquilo - e não raro minha opinião coincide com o mais impopular dos posicionamentos. Para o meu desespero, porém, continuo fiel à idéia de que é preciso pensar por contra própria, tanto quanto possível. Paradoxalmente, rezo o mantra de que nem tudo é preciso ser dito. E que o mundo agradece se não houver discordâncias sólidas daquilo que não se quer mudar.

Como agora já foi, quem sabe da próxima vez, não é mesmo? Não sei quanto a vocês, mas eu, bem, eu realmente torço por mim. E profetizo loucamente que haverá um dia em que finalmente distinguirei a palavra válida da inválida, a idéia pela qual vale a pena lutar daquela que é apenas ostentação e vaidade. Oremos.

Nota do Editor
Paulo Polzonoff Jr. dirige hoje o site Polzonoff Comunicação, onde estes textos foram originalmente publicados. (Reprodução gentilmente autorizada pelo autor.)

Paulo Polzonoff Jr
Rio de Janeiro, 6/5/2005

 

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