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Quinta-feira, 19/5/2005
Reinaldo Azevedo Contra o Consenso
Paulo Polzonoff Jr

Quando o Freddy pediu meu endereço para correspondência, perguntei se ele viria me visitar. Acho que ele não gostou da brincadeira, porque não respondeu. A verdade é que eu sabia que ele me enviaria um livro e que este livro era Contra o Consenso, de Reinaldo Azevedo, cujo lançamento já estava sendo alardeado. Por um motivo que desconheço, alguns editores ainda me mandam livros. É bom, mas muitas vezes é triste.

Recebi o envelope junto com outras correspondências. Abri e deixei o livro em cima da mesa. Há muito tempo eu perdi o interesse por qualquer tipo de lançamento literário. Fiquei de mandar um e-mail para o Freddy agradecendo, mas não o fiz. Às vezes eu sou mesmo uma lástima.

Hoje, porém, calhou de eu pegar o livro. Há muito tempo eu não leio nada. Estou naquela entressafra que me é costumeira, cheia de culpas pela preguiça intelectual. Na minha cabeceira repousam um Shakespeare, Harold Bloom, livros policiais e uma biografia de Stalin pela metade. No último mês, porém, os livros têm servido apenas como apoios para copos. Com já disse, ando triste. E não, ninguém tem nada com isso.

Enquanto fazia hora para ver um filme no DVD, peguei o livro de Reinaldo Azevedo. E um milagre aconteceu. Eu não sei se meus leitores acreditam em milagres. Para falar a verdade, nem sei se eu acredito neles. Mas que algo de extraordinário aconteceu é certo. O livro de Reinaldo Azevedo me deu vida.

Contra o Consenso, vocês sabem, é uma reunião de artigos, ensaios, resenhas (chamem como quiser) escritos para as revistas Bravo! e Primeira Leitura. Não sou leitor da primeira e fui leitor da segunda, quando ainda se chamava República. Mas não conhecia Reinaldo Azevedo, talvez porque, naquela época, vivesse às turras com meu próprio nome - e só com ele. Uma burrice, concordo. Estou até agora me chicoteando por não ter conhecido Reinaldo Azevedo antes. Ah, tantos equívocos teriam sido evitados!

Azevedo fala de literatura, cinema e política. Seu texto é agressivo, mas muito elegante. Ele é combativo, mas não se mancha no sangue alheio. Fala com propriedade e convence o leitor de um modo que eu só vi Paulo Francis convencer. Sobre o livro, dou um veredicto que me é muito caro: Azevedo é a melhor coisa que li, em jornalismo, desde a morte de Paulo Francis. O melhor - e mais sensacional - é que Azevedo não padece do mal de querer imitar Francis. Não chega nem perto disso. É outra coisa. E é tão bom quanto.

O que aconteceu nesta noite somente o céu explica. Eu, velho e cansado aos 27 anos, extremamente entediado com a vida literária, com os rumos da cultura brasileira (pode não parecer, mas este tipo de coisa me preocupa, sim), tive ganas de ler novamente. E de escrever. Você é capaz de perceber a grandeza disso? O exagero é minha marca, por isso não convém me envergonhar do que se segue: eu ressuscitei de uma morte em vida com a leitura de Azevedo. Tirei as faixas da múmia precoce que eu era, respirei com desejo o ar da madrugada. Se isso soa piegas, paciência. É o que é.

Livros são mesmo objetos especiais. Dentro deles a gente encontra, às vezes, beleza. Mas também podemos encontrar a maldade. Não é o caso, felizmente. O livro de Azevedo me deu vida. E uma amizade silenciosa, como a que nutro agora pelo autor. Não foi à toa que vim correndo para o computador dar este testemunho. Fui acometido por uma ânsia de saber que há muito eu não experimentava. E foi só um livro. Só?

Nos textos contidos em Contra o Consenso encontrei, claro, a exuberância do pensamento do autor. A idiossincrasia. O apreço pelo diálogo. E também o apego às convicções construídas ao longo da vida. Mas também encontrei a mim mesmo numa forma muito inocente, mas não mais pueril. Como um homem que vê o mundo com a empolgação de um menino, mas não deixa de ser homem. Mas não deixa de ser homem.

E, antes que eu me esqueça, obrigado, Freddy. Muito. E venha me visitar, por favor.

Itinerário da insônia
Tentei dormir. Minhas intenções eram as melhores possíveis: colocar a cabeça no travesseiro, fechar os olhos e imediatamente ser conduzido ao maravilhoso mundo dos sonhos ou pesadelos. Apaguei a luz. Na casa, fez-se silêncio. Pinguei duas gotas de descongestionante nasal em cada narina. Olhei um pouco o teto, numa oração silenciosa. Me ajeitei entre as penas de ganso.

Eis-me aqui, porém, escrevendo. A esta hora da madrugada. Meus dedos nas teclas do computador ecoam pela casa toda. Parece uma artilharia e, no final das contas, é. Algo deu errado. Não adiantou sequer contar carneirinhos, porque desisti quando estava chegando perto do segundo milhar. Quando dei por mim, estava imaginando toda a cadeia produtiva tanto da carne quanto da lã e administrando milhões imaginários de uma pecuária também imaginária.

Tentei novamente. O mesmo ritual. A cabeça entre as penas dos gansos. Um travesseiro muito bom, é preciso dizer, nem duro nem mole de mais, nem alto nem baixo demais. Algo próximo à perfeição. Se um dia eu morrer e algum espírito-de-porco tiver a intenção de melar o meu desejo de ser cremado, peço apenas que me enterrem com um travesseiro de penas de ganso. Ou eu volto para puxar as cobertas.

Fechei os olhos. Súbito, foi tomado pela Síndrome de Cego. Todos os meus outros sentidos se atiçaram. Primeiro, a audição. Um carro passou lá fora e eu o escutei como se estivesse ao meu lado e fosse um carro de corrida. Depois passou um destes caminhões de lixo e foi como se o mundo caísse. Tive calafrios. Comecei a pensar no barulho que deve ser um asteróide caindo. Ou uma bomba atômica. Me perdi na imaginação de que estava em Hiroshima há sessenta anos.

O tato resolveu mostrar as suas garrinhas assim que a audição me deu trégua. Virei-me de lado e os joelhos se tocaram, causando uma fricção irritante. De olhos bem fechados, peguei um travesseiro reserva e o pus entre as pernas, separando os joelhos como um pai de inspiração salomônica. Mas já então o lençol começou a fazer dobras e as dobras começaram a incomodar. Não tive escolha: me levantei e deixei o lençol esticadinho. Deitei novamente. Fechei os olhos. Contei uns em carneirinhos, só para garantir. E nada do sono.

Abri os olhos. Fiquei mirando o teto. Imaginando mil e uma coisas nas formas muito fracas das sombras. De repente, me lembrei do quebra-cabeças que deixei por montar. E uma a uma as peças que faltam montei - na minha cabeça. As peças, não sei por quê, se encaixavam perfeitamente. Terminei o quebra-cabeças imaginário. E bocejei. Foi um gesto a ser comemorado. Sinal de que o sono se anunciava. Mas quem chegou mesmo foi o diabo.

Não bateu à porta. Não pude sequer ouvir o barulho de seus cascos no trote matreiro pelo quarto. Não cheirava tampouco a enxofre. Chegou invisível como um anjo e se sentou ao meu lado para sussurrar pensamentos ruins. Não pensamentos maus, mas pensamentos ruins - percebe a diferença? Lembrei de uns diálogos e os distorci em meu prejuízo. A cada palavra dei um peso diferente do comum. Alguns minutos mais tarde, o diabo se afastava, deixando meu coração espatifado. Todos me odiavam, os sinais eram claros, mas eu não havia prestado a devida atenção a eles. Isto sem contar que não havia esperança para a minha vida.

Percebi que o diabo havia deixado o quarto porque os pensamentos ruins foram substituídos por idéias, planos a projetos. Não que idéias sejam necessariamente boas. Na alta madrugada, com os olhos doídos e o desejo forte de pegar no sono, nenhuma idéia é realmente boa. Mas podem ser úteis - e é por isso que eu durmo com uma caderneta ao lado da cama. Nunca a uso, porém. Porque as idéias costumam vir em torrente e eu nunca consigo me levantar, acender a luz e pegar a caneta para anotá-las. Quando dou por mim, estou inundado por idéias que escorrem das minhas mãos.

Já perdi a conta de quantas histórias escrevi nestas noites de insônia. Romances às dúzias. Até uns bons poemas. Me aventurei em reportagens as mais diversas, ganhei prêmios, dei entrevistas - tudo às custas do sono que não vem, o maldito. Até que tive a idéia brilhante de escrever um itinerário da minha insônia. Este.

Levantei. Fui à cozinha. Peguei um pedaço de queijo e coca-cola, apesar da cafeína. Liguei o computador e, para a minha alegria, bocejei novamente. O barulho do computador é entediante, o que me dá a esperança de um sono rápido. Abri a sempre soporífera tela branca do processador de texto e...

Eis que o texto está escrito. O sono veio (uma salva de palmas, por favor), mas é preciso pôr um ponto-final aqui antes de pegar a rede de caçá-lo. Vou. Que o animal voa alto e rápido. Até amanhã.

Nota do Editor
Paulo Polzonoff Jr. dirige hoje o site Polzonoff Comunicação, onde estes textos foram originalmente publicados. (Reprodução gentilmente autorizada pelo autor.)

Para ir além





Paulo Polzonoff Jr
Rio de Janeiro, 19/5/2005

 

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