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Sexta-feira, 21/10/2005
J.M. Coetzee e o romance de formação
Julio Daio Borges

"Houve um tempo, quando ainda era uma criança inocente, em que acreditou que a inteligência era a única coisa que importava, que, se fosse bastante inteligente, obteria tudo o que desejasse."
J.M. Coetzee

Muito tempo atrás, numa galáxia distante, eu conheci um escritor. Na verdade, foi um amigo que me ligou e falou: "Cara, conheci um escritor". Segundo esse meu amigo, ele morava num apartamento que era praticamente uma sala (ou um quarto) com uma mesa, uma cama e uma estante. E um banheiro em algum lugar. Semanas se passaram, eu também conheci "o escritor". Fui lá. Era exatamente conforme a descrição. Num bar, depois, o Escritor me confessou que planejava escrever um romance de formação. Romance de formação? "Sim, à maneira de James Joyce, em Retrato do Artista Quando Jovem". Ah, bom...

Ao contrário dele, eu não era escritor — e não entendia patavina de "romances de formação". Com o passar dos anos, porém, descobri que o Escritor de então não só se planejava para escrever seu alardeado romance de formação, como vivia uma vida-de-escritor-de-romance-de-formação. Tudo estava em seu lugar: a austeridade, as leituras, o esforço. Ele, obviamente, tinha a receita de bolo e estava cozinhando a massa em fogo baixo. Perdi o contato com o Escritor. Pelo que sei do que anda aprontando, não cumpriu a meta do tal romance de formação. Ou tem um livro escondido na manga. Sei lá; não importa.

A realidade é que, em determinada época da vida, surgem questões inescapáveis para quem pensa, seriamente, em se tornar escritor. Em se tornar artista. Hoje, claro, existem caminhos mais curtos e as ambições estão muito menores do que antes. Não somos mais os mesmos; nem vivemos como os nossos pais (ou avós). Nossos ídolos não são os mesmos e as aparências enganam... Hoje, ser reconhecido é muito mais importante do que realizar uma obra. Na realidade, os famosos que encontramos (célebres de um tempo atrás) prescindem da obra mesma. Ela não é mais necessária. Ela atrapalha. Ela é uma responsabilidade; pode se voltar contra nós...

Ainda assim, os que acreditam em "romance de formação", ou em "formação" (tout court), sabem que é preciso se preparar para a empreitada. Ou, no mínimo, estar preparado — para quando a hora chegar... Quais são, por exemplo, as leituras fundamentais que um escritor não pode (ou não deve) evitar? No meio de tantos livros (velhos e novos), quem pode lhe indicar o caminho seguro? O jovem escritor ou aspirante deve ter mentores? Onde se pode encontrá-los? Eles são confiáveis? Será que não escondem outras motivações que não as estritamente literárias (de repente — como foi moda — as ideológicas...)? Os referenciais de ontem ainda valem para os escritores de hoje? O escritor deve falar à sua própria época, e então se sintonizar com ela, ou deve seguir apenas uma determinada tradição?

Quem não se pegou pensando nessas coisas, não foi, nem por um minuto, escritor. Ou artista. A crença generalizada, hoje, é a de que — além de prescindir da própria obra — podemos prescindir até da nossa formação. O valor está no "espontâneo", no "natural", no "novo". Formação dá trabalho; formação cansa; formação... tem de pensar. Estamos tão acostumados a obter as coisas prontas, produzidas, "produtas", que a formação deve ser mais uma coisa que se pode comprar; que se pode obter através de uma pílula; que se pode aprender como o inglês, em semanas... Formação? A própria palavra nos é estranha. Embora todo mundo vá à escola e, aparentemente, entenda a importância da "educação". Educação. O Brasil não vai pra frente por causa da (falta de) educação.

Relacionamentos. Outro ponto. O artista (ou escritor) deve ser solitário ou deve se relacionar com outras pessoas? Até que ponto? Deve se casar ou deve fugir do casamento? É importante que o artista passe por toda a gama de experiências humanas ou ele deve simplesmente ser capaz de emulá-las por meio de sua imaginação? (Em outras palavras:) O artista deve trabalhar, casar, ter filhos — como todo mundo — ou deve ser um observador à parte, um elemento neutro, para sempre afastado da vivência do cotidiano, dessas e de outras questões? Os relacionamentos podem se converter em um peso para ele, futuramente, frente à arte e suas demandas infinitas? Ou os relacionamentos podem servir de conforto, podem prover-lhe equilíbrio (e força), quando o fracasso, o desespero e a loucura alcançarem sua alma?

O artista deve ter amigos? Que tipo de amigos? Amigos "artistas" como ele? (Colegas de trabalho?) O artista deve compartilhar suas dúvidas com os outros ou a influência do diálogo pode ser fatal para a sua originalidade? Entre as disponíveis, quais influências deve selecionar? Como julgá-las? O artista deve ser mundano, atravessar algumas experiências-limite, apenas para sobreviver do outro lado e (depois) contar? Ou deve se resguardar da poluição (e das tentações) do mundo moderno — deletérias, viciosas e corruptoras? O artista deve pretender uma ascese quase santa, num eterno caminho para a purificação (a glória e a elevação)? Ou deve se imiscuir com o "sujo", o "podre", o "baixo" — romper, em definitivo, com a (ou com as amarras da) sociedade, à maneira de um marginal, para poder dissecá-la de verdade, sem escrúpulos, sem vínculos e sem perdão?

O sexo oposto. As mulheres entendem as nossas ambições? Ou seu mundo é outro e, ao lado delas, estaremos eternamente condenados ao conflito, à disputa, à incompreensão? Existem mulheres-artistas? Elas devem ser procuradas? A comunicação melhora com alguém na mesma condição, ou é tudo inútil — e jamais existirá qualquer ponto de contato entre os caracteres masculino e feminino como a História comprova? Homossexualismo. É uma opção? Todo artista deve ser sexualmente ambíguo — para retratar, devidamente, homens e mulheres em suas situações? Deve vivenciar experiências homossexuais? Deve amar livremente e sem tabus — seja ser, coisa ou pessoa? Deve ser ele um celibatário? A privação sexual é uma forma de escapar de apelos "menores", terrenos em suma, ou o sexo é também uma forma de libertação?

Trabalho. O artista deve dividir suas atenções (e suas energias) entre a-grande-obra-à-qual-está-destinado e um trabalho convencional? A arte pede dedicação exclusiva e se o artista não puder prover nem isso é melhor que desista logo? Ou a arte, justamente, precisa de um contraponto, de uma atividade paralela, secundária, de um momento de descompressão, que a legitime e que forneça ao artista o devido distanciamento crítico? O artista deve viver sempre no cume da montanha ou deve descer de quando em quando? O que deve prover o seu sustento? Se o artista viver de sua arte pode, em função da ambição do dinheiro, sacrificar seus ideais? Para o grande artista, o sucesso ocorre ou nunca ocorre? O reconhecimento é necessário ou pode ser pernicioso, desviando as verdadeiras demandas da arte para as aspirações, comezinhas, do público? Existe gênio incompreendido? O que um artista deve esperar de sua própria época (em termos de resposta)? Quais (ou quem) serão os seus referenciais? Ou deve se preparar para morrer em dúvida ou, por outra, na certeza de que talvez a vida (ou o sacrifício) foi em vão?

J.M. Coetzee, em Juventude (Companhia das Letras, 2005), responde a todas essas questões. Ou por outra: não responde, mas pergunta — e deixa que seu protagonista decida por si só. Ou então deixa a vida arrastá-lo (como ela arrasta a todos nós). John é um sul-africano, como Coetzee, que partiu nos anos 60 para Londres, como Coetzee, a fim de realizar suas aspirações de poeta (como Coetzee?). [Sei que não é de bom-tom contar o final do livro, mas...] Termina devorado pelo trabalho (como programador na IBM), frustrado em seus relacionamentos (depois de um aborto, uma perda da virgindade e amantes variadas — ah, também, um homem) e virtualmente esterilizado como escritor (depois de um mestrado interrompido, recorrentes leituras e uma poesia minguante) — não como Coetzee (que levou o Nobel pra casa e é hoje um dos maiores autores do inglês contemporâneo).

O mérito do romance está em atualizar, justamente, o "romance de formação" para os dias de hoje. Ou para algumas décadas atrás (o que dá quase na mesma). Afinal, embora os anos 60 tenham sido tão revolucionários como se propaga, não trouxeram novas questões literárias — na verdade, com sua efusão pop, até sufocaram vocações "livrescas" (no bom e no mau sentido), de modo que, apesar de inúmeros avanços comportamentais (a pílula, o amor livre, os direitos humanos), não caminhamos nem um milímetro em matéria de literatura; até regredimos. Como John, continuamos não entendendo as mulheres (ou disputando com elas "objetivos"); como John, seguimos premidos pela falta de dinheiro (ou por uma "carreira sólida", a única possível, numa empresa ou afim); e, como John, ainda sofremos da falta de inspiração incorrigível (num mundo que, se também não inspira, repudia vocações nesse sentido — a arte nunca foi tão inútil, para parafrasear Oscar Wilde).

Em termos literários, estritos, Coetzee também "atualiza" sua narrativa. O volume tem menos de 200 páginas em português e resume todas (ou quase todas) as colocações que se poderia aventar dentro de um romance de formação. Como disse, sua técnica é perguntar (e, não, responder), abdicando de psicologismos no estilo do século XIX (talvez uma fraqueza — ou sacada — sua) e adotando uma abordagem moderna, kafkiana, da história: os personagens são praticamente antipersonagens, porque quase nada decidem, empurrados pelas situações em que se encontram (mais ou menos na linha da crítica que Machado de Assis fez a O Primo Basílio de Eça de Queirós: Luíza nada "apita", é resignadamente envolvida pela trama; hoje, ou durante o século XX, uma fórmula que se consagrou...). No fundo, o apelo da novela (literária) atualmente parece ser mais forte do que o do romance (tradicional) — se tomarmos, por exemplo, a eterna falta de tempo (para a leitura), ou alegada, pelas pessoas.

Juventude é brilhante, então, no sentido de recriar toda uma atmosfera perdida, a do artista em formação, numa época em que nenhum estímulo é dado (aliás, é repelido); em que os artistas verdadeiros ou estão escondidos ou não tratam absolutamente disso; em que, finalmente, se acredita (e se repete ad nauseam) que a arte e a literatura morreram, se foram para nunca mais... (apesar da internet e de suas "vocações" em botão). Coetzee, numa seqüência de obras-primas (Elizabeth Costello, O Mestre de Petersburgo...), reafirma seu primado como escritor em inglês, confirma a acertada premiação do Nobel e transmite alguma esperança para escrevinhadores que não viam mais caminhos para uma realização literária autêntica.

"Nossa solidão irá embora, ou será a vida da mente a sua própria recompensa?"
J.M. Coetzee

Para ir além





Julio Daio Borges
São Paulo, 21/10/2005

 

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