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Quarta-feira, 15/6/2005
Sobre cafés e livros
Ana Elisa Ribeiro

O que você quer quando vai a uma livraria? Se estivéssemos conversando face a face, você provavelmente me olharia com sarcasmo e faria um gesto acusatório: óbvio que quero um livro. Mas isso não é mais tão óbvio assim. Aliás, dificilmente o óbvio ulula bem embaixo do nosso nariz. Em Belo Horizonte, e em vários outros lugares, você pode ir a uma livraria sem ter a menor vontade de comprar ou de ver um livro. Aliás, é provável que você demore a perceber que está dentro de uma livraria.

É que a moda dos cafés, que já é bem longeva, nos brindou com imensas lojas cheias de badulaques das mais diversas categorias, inclusive, se me lembro bem, livros. Essas "livrarias" fazem concorrer entre si, nas vitrines, CDs de música, CDs virgens, DVDs da Disney e os filmes de Cronenberg, artigos de papelaria, bolsas e mochilas, livros de literatura, auto-ajuda, técnicos, relógios exóticos, quadros de ferro e ímãs, almofadas de pelúcia, bonecos de RPG e um cardápio de cafés e vinhos.

Tenho uma vontade macabra de ver alguém bêbado na livraria, mas sempre que reparo as mesas ao redor as pessoas estão sintonizadamente tomando cafés e capuccinos, cada qual com seus cheiros deliciosos. Também essas livrarias oferecem todo tipo de cigarro e cigarrilha. Faz parte da cena o cliente chegar, sentar-se à mesa, pedir uma bebida quente, um cigarro cheiroso e olhar o nada com ar de divagação.

Também entram na livraria consumidores que perguntam por carrinhos de coleção, filmes, borrachas, fichários e trufas. Não me surpreendem, mas parecem surpreender o vendedor, quando ele não lhes pode responder a contento sobre um livro de autor contemporâneo.

O que é que eu fui fazer na livraria? Eu estava procurando um livro. Certa obra técnica que infesta as referências bibliográficas dos textos que leio e então achei que eu também deveria lê-la. Como era desses códices que a gente tem vontade de rabiscar, anotar, comentar e marcar, resolvi ter o livro, bonito, impresso, original. Não encontrei em lugar nenhum, mas o que importa é o percurso desta minha busca.

Passei por duas livrarias dessas enormes, com escadarias, segundo andar, rede de lojas por toda a cidade. Também passei por duas livrarias médias, dessas que têm tradição e são cercadas de lendas urbanas. As outras quatro eram livrarias cult, dessas que servem cafés e bolos. Pedi um capuccino e até fiquei um tempo ouvindo a moça que cantava ao vivo num palco de canto. Mas então me lembrei de que tinha uma meta: procurar um livro, e fui em busca dele. Mexi e remexi em todas as prateleiras, mapeei a loja, fui nas estantes que ficavam sob a placa da categoria em que eu imaginava encontrar meu livrinho. Observei, me aproximei, espirrei a poeira dos livros guardados, chamei o vendedor, pedi informação à menina do caixa e saí de lá com as mãos abanando. Nada de livro, nada de encontrar um clássico da literatura da minha área de estudo. Fiquei frustrada. Tanta coisa pra vender, tanto objeto pra distrair o leitor e logo meu livro não estava ali.

Impressionante a limpeza do balcão, a voz da cantora, a estante de periódicos, o uniforme dos garçons, a agilidade do caixa, o cheirinho do café. Mas o vendedor não sabia me informar sobre livros e as estantes estavam empoeiradas e em completa desorganização. Era impossível inferir, sem ajuda urgentíssima, o critério de disposição daquelas obras todas. No meio dos dicionários de línguas, estava o dicionário de palavrões do Glauco Mattoso. No meio dos livros de botânica estava o Raízes do Brasil, do Sérgio Buarque. O livro que eu procurava devia estar em algum lugar daquele universo indistinto. Talvez na prateleira da cozinha, junto com as colheres de pau.

O que eu procuro quando vou a uma livraria? Em geral, procuro por um livro. Também posso chegar à loja procurando por um tema, sem ter a idéia exata de que livro levar. Quando é assim, sinto a necessidade de encontrar ajuda numa espécie de consultor. Não um vendedor treinado para me dizer "bom dia", mas alguém que saiba sobre o objeto que vende. Daí que faço as perguntas e ele deve me responder com alguma dose de precisão, além da simpatia. Também pode ser que ele me dê uma sugestão, o que será delicioso. E se a sugestão for bem-sucedida, serei fiel à livraria.

Mas parece que, nesta cidade, as livrarias já não têm mais a missão de vender livros. Têm tantas outras que esta se confunde com o pó do capuccino industrializado. Estão lá garçons que vendem livros e cantoras que interpretam poetas que não se encontram mais nas prateleiras. A menina do caixa nunca lê as capas das obras que vende. Atrás dela está pendurado um painel com uma cena do Dom Quixote. Ela pensa que é o esboço de um desenho animado Disney. E então eu sei que não encontrarei o livro que eu quero porque ele deve estar perdido na desordem da loja. Não poderei contar com o vendedor porque ele também não sabe do que estou falando. E não poderei fazer outra coisa ali que não seja degustar um café e ler sobre vinhos chilenos com nomes interessantes.

Mas eu não fui à livraria com a intenção de conhecer vinhos andinos. Nem cheguei lá pensando em paquerar. Também não queria ouvir música ao vivo. Nem tinha dinheiro para pagar o couvert artístico. Não imaginava que seria atendida por um garçom e não queria que o vendedor ficasse constrangido em me dizer que nunca ouvira falar daquele livro antes. Eu queria uma obra que infesta as referências dos meus pares. E onde será que eles a encontraram?

Depois de percorrer a cidade em busca do meu livro e não encontrar, entrei na Internet e achei. Pedi, paguei frete e o terei em casa sem pedir ao garçom e sem sentir cheiro de café. Não há nada de mal em tomar capuccino na livraria. O que deve estar fora do lugar é a ênfase. Se eu entrasse numa cafeteria e perguntasse por um livro, talvez o garçom se desse conta de que eu é que estava no lugar errado.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 15/6/2005

 

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