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Quinta-feira, 23/6/2005
Literatura brasileira hoje
Astolfo Lima

O processo de torpedeamento em cima da nossa literatura já vem de long time, não é novidade, porém agora se acentuou de tal modo que não dá mais para silenciar, sob pena de vermos virar fumaça o Pensamento Nacional Contemporâneo.

Começa quando eliminam o Latim e a Filosofia de todos os currículos escolares e jogam a Literatura como simples apêndice da língua pátria. Beleza. Depois, bastaria minar todos os espaços que ainda estivessem disponíveis nos jornais e revistas de mil novecentos e antigamente, em que se publicavam a literatura propriamente dita em forma de poemas, contos, capítulos de romances etc. Se o texto era de qualidade ou apenas uma farsa, caberia tão somente ao destinatário da escrita fazer a sua avaliação. O mais importante é que se estabelecia ali um elo cultural entre a galera e o artista, ativando aquela chama, propiciando a que se formasse no leitor um acentuado senso crítico, inclusive despertando em alguns o gosto por uma arte sem a qual nenhum país do mundo poderá se dizer civilizado. Se o cara se garantisse, não tinha erro, alçaria vôo rapidamente com a exposição de seus trabalhos nesses tablóides. Tanto isso é vero que foi dessa forma que se viu florescer entre nós duas ou três gerações de escritores que dariam as cartas ao decorrer de todo o século XX.

Agora, lamentavelmente, tudo virou bosta - como diria com muita propriedade a talentosa Rita Lee. É o advento das gerações periquitinho seco e mamãe, esqueci meu trombone. Eles que ditam os rumos da "curtura" nacional, confeccionam as antolorotas e bolam em mesas de bares entre um gole e outro de cerveja os livros-brinquedos que serão vendidos por uma nota preta nos bazares-livrarias dessa terra desvairada. Dominam o pedaço e vão muito bem, obrigado. Dia desses tava um lá em Paris, na madrugada, dando entrevista prum repórter da TV de mentirinha e descendo o malho na "crítica especializada", nos esotéricos e resenhistas oficias; até parecia... Deixa estar! Somos, portanto, não mais que a pátria dos mariquitas de lente grossa, olheiros das grandes editoras e aproveitadores de sacadas não plenamente desenvolvidas por outros escritores em épocas distantes, todos vasculhando códigos, deturpando as obras já em domínio público e imbecilizando cada vez mais a massa consumidora e lerda.

Na mão grande tiraram de cena aquele autor visionário, criativo, baniram o poeta mais lúcido, deletaram o texto inventivo, a poesia, e em seus lugares nos empurraram goela abaixo (ou pelo menos tentaram) os escribas-jornalistas, piadistas medíocres, ébrios e midiáticos, alguns apenas engraçadinhos, meia dúzia de vivandeiras bem remuneradas, todo um disciplinado batalhão de legitimadores da sub-arte, abraçados a seus textos inúteis, pre-formatados, repletos de termos técnicos, chavões, invadindo os espaços na TV, nos jornalões e revistas semanais, emprenhando com abobrinhas o crânio já vulnerável do distinto público consumidor e entupindo de grana os cofres dos felizes proprietários de renomadas casas editoriais.

Para esses famigerados agentes do desmonte a literatura-cabeça é apenas uma excrescência e não a mais importante de todas as artes; única na virtude de fixar um país no mapa cultural da humanidade. Balela. Importante para eles é apenas formar uma colossal legião de criaturas vorazes no gesto de absorver inutilidades. Ignoram ou fingem que tudo aquilo que emana do vivo pensamento de um povo está diretamente relacionado com a Literatura, desde a crônica mais remota, os escritos sagrados, os poemas épicos, as epopéias, tudo, tudo; a bela pintura, os filmes grandiosos, as encenações teatrais, as fantásticas esculturas, os melhores discursos e teses, a música erudita, os grandes concertos... enfim, que a vida flui da literatura e que tentar extingui-la é querer anular-se enquanto indivíduo e negar a própria terra em que fincaríamos nossas raízes.

Para aquilatarmos esse dom prodigioso que a literatura tem (ou teria) de inserir um povo no contexto histórico de seu tempo, basta lembrarmos que se tornou lugar-comum certas afirmações: "a língua de Camões, de Fernando pessoa, ou de Shakespeare, de Goethe ou Cervantes". De tal modo os grandes Mestres da Literatura se incorporaram à nomenclatura das Letras Universais, ao verbo e à própria existência humana, que viraram adjetivos. "Uma situação kafkiana", "Um drama shakespeariano", "Um texto tipicamente borgiano". Jamais se diria: "a terra de Bill Gates", "de George Bush" ou de qualquer outra figura notável no campo do capitalismo ou da política, mas nos expressaríamos com muito gosto sobre a pátria de T. S. Elliot e Edgar Allan Poe.

Nota do Editor
Texto originalmente publicado na nova revista Cronópios e reproduzido aqui com autorização do autor.

Astolfo Lima
São Paulo, 23/6/2005

 

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