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Segunda-feira, 4/7/2005 24 Horas: os medos e a fragilidade da América Marcelo Miranda Vez ou outra na televisão, um seriado domina a atenção dos espectadores acima de todos os outros. Para ficar apenas nos últimos 20 anos, foi assim com Twin Peaks e seu mistério sobre a morte de Laura Palmer. Foi assim com Arquivo X e os infinitos enigmas envolvendo alienígenas, conspirações e seres sobrenaturais. E foi assim em 2001, com a estréia da série de ação que mais mexeu com o público em muito tempo: 24 Horas, criada por Joel Surnow e Robert Cochran (a título de curiosidade: a série da vez, hoje, é Lost, de J.J. Abrams). Vários fatores tornaram 24 Horas um estouro já na primeira temporada (somam-se quatro, desde então). O maior deles, e a forma como o seriado foi vendido, é o conceito de tempo real: os acontecimentos são contados e apresentados na hora em que os vemos, sem elipses (saltos temporais). Assim, o espectador vive com os personagens os dramas e as situações criados pelos roteiristas, passo a passo, minuto a minuto, desde o começo - com direito a relógio aparecendo na tela e efeitos de split screen (tela dividida) para mostrar eventos que ocorrem simultaneamente. Cada episódio totaliza uma hora. Os obrigatórios intervalos comerciais também contam, e sempre surgem quando alguém está em alguma atividade demorada, como dirigindo ou esperando. No final da temporada, teremos acompanhado um dia completo. Mais do que um fenômeno pop, 24 Horas é contemporânea também em sua temática, sempre girando em torno do terrorismo. Não foi por acaso que a estréia se deu em 2001, ano do ataque aéreo ao World Trade Center, em Nova York. A série foi o primeiro produto audiovisual, e provavelmente ainda o melhor, a captar o medo que assolou os EUA desde então. Mais do que isso: a captar a fragilidade existente naquele país, atingido em seu coração, numa simples manhã de trabalho, por "invasores" dispostos a se matar em nome de causas religiosas ou ideológicas. O seriado transpôs para a tela pequena dos lares ianques o quanto a América mostrou-se indefesa e um alvo em potencial. Todas as temporadas contêm elementos que mostram tanto um lado extremamente patriótico quanto um viés crítico sobre as formas de se lidar com o perigo iminente. Na primeira temporada, conhecemos o diretor da Unidade Contra-Terrorismo (UCT) de Los Angeles, Jack Bauer (Sutherland), e toda a equipe que o auxilia. Convocados à meia-noite, recebem a tarefa de impedir um atentado ao senador David Palmer (Dennis Haysbert), provável primeiro presidente negro da história dos EUA. No decorrer das horas, vamos descobrindo mais e mais fatos surpreendentes, até a revelação final: o responsável é um ex-braço-direito de Slobodan Milosevic, antigo ditador do Kosovo. Ele sofrera emboscada de militares americanos e perdera toda a família. O detalhe, aqui, é que a equipe havia errado a estratégia e matado os parentes por engano - num daqueles "ataques cirúrgicos" típicos, acertando onde não se deve -, mas o verdadeiro alvo sobrevivera, conseguindo escapar e passando dois anos a planejar vingança contra o agente líder daquela força de elite (Bauer) e o político que a ratificara (Palmer). Fica explícito que a motivação do antagonista vinha de dentro do país americano, que foi se meter em briga alheia e acabou levando para a própria casa um mal que estava muito longe. No fim, quando tudo parece resolvido, uma espiã mata a sangue frio a esposa grávida do protagonista, colocando por água abaixo todo o seu esforço em protegê-la. A cena final deixa clara o maior dos sinais de fragilidade: a família destruída, a perda como forma de punição pelos erros do passado. Por mais que o senador estivesse a salvo, o preço pago foi altíssimo. Ora, nada muito diferente dos dossiês montados na Inglaterra, recentemente, como forma de justificar a invasão ao Iraque em busca de armas de destruição em massa. Se em 24 Horas a coisa é mais radical, na vida real não se passou muito longe. Os pretextos são barbaramente montados de forma a não haver dúvidas da culpa do "oponente" da vez; é a maneira de afastar desde já qualquer sombra que possa se impor na geopolítica envolvendo a América. É a política de prevenção, sempre melhor do que remediar depois - como aconteceu em setembro de 2001. No seriado, mais uma vez Jack termina frágil e fisicamente derrotado: a certa altura, é torturado por bandidos, sofre parada cardíaca e precisa sobreviver com constantes pausas do coração até o desfecho. Novamente salva a pátria, claro, mas não pode colher glórias - e vistas algumas atitudes suas no decorrer dos episódios (como ameaçar matar a família inteira de um dos terroristas para arrancar-lhe informações), esta "derrota" serve de compensação. Ainda assim, Jack não consegue impedir uma última ação: a infecção do presidente por uma substância quase mortal, que o incapacita e o enfraquece. A temporada termina com um David Palmer estirado no chão, aparentemente agonizante, sob flashes e câmeras. E se falamos em radicalismo logo acima, o terceiro ano de 24 Horas foi o mais radical com os protagonistas. Boa parte de quem participava da série desde o começo ou morre ou se retira de cena no fim. O enredo envolve vírus letal em poder de terroristas, que planejam liberá-lo em grandes cidades. O curioso é que o motivo vem da mesma ação desastrada que originou os fatos da primeira temporada (a operação em Kosovo). No caso, um agente britânico dado como morto desde então retorna para ajustar as contas com a nação que o deixou para trás. Aqui, mais do que em qualquer momento anterior, temos o medo se instalando em todas as camadas, e uma nação de joelhos diante do inimigo - ele negocia diretamente com o presidente Palmer e ordena as mais absurdas tarefas, chegando a obrigar o líder maior a autorizar o assassinato de um dos chefes da UCT (numa das cenas mais fortes e tristes de todo o seriado). O vírus, a persuasão do "vilão", as formas como ele atinge o orgulho e a moral do mais poderoso Estado do mundo, servem de expiação para os próprios medos dos cidadãos. Se existe a "proteção" de Bush contra o "eixo do mal", tornando os lares mais seguros, a ficção televisiva joga na cara do público que, guardadas as proporções, não há tanta segurança assim. Um plano bem armado, muita paciência e o ódio característico desses "vilões" podem surgir quando e de onde menos se espera - e novamente é válido recorrer ao 11 de setembro, símbolo máximo dessa ameaça que, como tenta mostrar 24 Horas, pode surgir não só do lado de fora, mas também no quintal de casa. O quarto ano de 24 Horas ainda está rolando no Brasil enquanto escrevo. Até o momento, é a menos interessante das temporadas. Deixa um pouco de lado o teor crítico das anteriores e cria um verdadeiro vilão, o primeiro a aparentemente não possuir resquícios de sentimento ou apreensão. Se por um lado isso enfraquece a trama, por outro permite que os mais alucinantes acontecimentos sejam destaque. Das sete da manhã, quando começou a nova série, até uma da manhã, por enquanto, já houve o seqüestro do Secretário de Defesa, o derretimento de usinas nucleares e até a queda e destruição do Força Aérea Um, morada aérea do presidente. Há certa falta de foco neste quarto dia, não existe mais a ameaça única, mas uma série de atos selvagens a serem desvendados ao longo do tempo. Isso tira o brilho de antes, torna tudo um jogo de gato e rato com pouco espaço para complexidades e sutilezas de roteiro. De qualquer forma, continua sendo imperdível no que tem de elementos de ação e política. E sem deixar de lado aquela idéia de que os EUA estão, estarão e estiveram à mercê de inimigos, internos ou externos. Não há Bush que segure essa obstinação, esse anseio pela justiça que às vezes não é tão justa, mas busca equilibrar a complicada balança global, nem que seja pelas vias morais e humanamente questionáveis. Marcelo Miranda |
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