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Terça-feira, 14/8/2001
E eu mais ainda!
Rafael Lima

Tava demorando...
Rodinha de samba no botequim, ambiente democrático porém respeitador: quem não sabe a letra não canta, quem não tem instrumento não batuca na mesa. Em meio a apreciadores da música simples, gente da noite e boêmios, amadores ou profissionais, aquela menina. Jeito de recém chegada de Arembepe há 30 anos. A estampa pop art na camiseta e o discreto piercing no nariz fazem o contraponto estético moderno-tradicional, cujas leis são recitadas milimetriamente por cada peça que compõe seu vestuário. Os cabelos são escorridos, não tem maquiagem e é bonito ver como ela se assanha quando toca uma música que conhece. O papo com a amiga, alter ego, roda por Santa Teresa e bares da Lapa.... Apesar dos olhares cúmplices e 2 beijinhos no rosto aqui e ali, fica a impressão de que ela tem, ou não tem alguma coisa que a impede de se misturar à fauna local, não se sabe bem o que. Até que ela saca o celular da bolsa.

Como aquele livro do Veríssimo: As mentiras que os homens contam
Diálogo entreouvido no mesmo bar, na mesma noite, entre, Coroa, com idade para ser o senhor seu pai, mas apesar disso dando em cima:
- Qual é a sua religião?
Moça bonita, o mesmo jeito de recém saída de Arembepe, a voz duas oitavas acima do normal porque a parte de seu superego que cuidava disso já foi completamente dissolvida em álcool:
- Eu sou atéia.
Coroa: Mas atéia, não acredita em nada?
Moça: Em nada. Quer dizer. Eu acredito em energia. As pessoas têm energia.
Coroa, de bate pronto: E eu mais ainda!

Eu sou normal!
Justiça seja feita: Fernanda Young cumpriu os passos com rigor exemplar. Escreveu 3 livros, um pior do que o outro; só falou besteira ao responder as 20 perguntas da Playboy; criou aquele tipo de polêmica vazia em torno de si que só enche os olhos de editor de suplemento feminino de jornal do bairro, mas é consumível e suficiente para lhe angariar um rótulo como o de escritora pop. Era uma questão de tempo até que, por sua atitude moderninha, fosse alçada ao posto de formadora de opinião. Tanto era que ganhou uma coluna semanal, no JB. A única coisa que pode redimir uma biografia - porque isso não é currículo - dessas é a sua obra. E quem viu os primeiros episódios de Os Normais, nas noites de sexta na Globo, já sabe do que estou falando. Não são as interpretações padrão de Fernandinha Torres ou Luís Fernando Guimarães, nem o "senso de típico" (© Paulo Salles) para as situações estranhas & cotidianas de classe média, nem o ritmo cinematográfico dos programas do núcleo Guel Arraes o que deixa aquela sensação, mais do que satisfação, de... desconforto. É a disposição de Fernanda Young para ir além, retratando um naturalismo sem par na Tv até agora: a mulher que após ver seu noivo lhe traindo fica puta e diz: "Vou dar para o primeiro babaca que aparecer!"; o casal enojado quando descobre que o amigo come os restos de comida presos no fio dental; a mulher, irritada com o parceiro que desligou a luz do quarto enquanto ela lia: "liga essa bosta!". Nesses termos. Detalhes constrangedores do convívio íntimo: o namorado que vem para a cama com um sujo de xixi na cueca; uma certa "dança boba" convidando ao sexo; chupar o dedão do pé da parceira; o "beijo com boca de homem elefante". Duas amigas e o noivo de uma discutindo no carro as regras do ménage à trois que vai rolar quando eles chegarem em casa. A palavra para isso é transgressão. É, a falta de tato verbal de Fernanda Young acabou inovando a liguagem televisiva ao levar o padrão globo de qualidade a limites outrora proibidos. Quem sabe, algum dia, até aparece alguém tranquilamente tirando meleca do nariz. Como qualquer motorista distraído.

9 rainhas, 2 valetes e 1 curinga
O filme 9 rainhas é argentino, mas seu roteiro poderia perfeitamente ter sido ambientado no Rio de Janeiro da década de 80. Não bastasse ter que aturar a seleção deles na cabeça do grupo, e ver o dólar levantar vôo por conta dos coices do ministro Cavallo, a gente ainda tem que engolir o fato de não ter conseguido produzir uma leitura tão correta do momento em que vivem, vivemos, no cinema, o meio perfeito para esse tipo de retrato. Juan e Marcos são 2 pilantras, tambiqueiros, safados, punguistas que ganham a vida escorregando entre as brechas no sistema e enganando velhinhas indefesas. A maneira solidária com que ambos são tratados no roteiro remonta à eterna tradição literária, particularmente de esquerda, de glorificar os marginais, os excluídos do sistema, porque vítimas de um status quo injusto. Incapazes de realizar produtivamente seu potencial, acabam voltando-se para o crime, como bem exemplifica Carlinhos Oliveira na novela Terror e Êxtase. Ainda que preceba-se certo esquematismo na constução dos personagens - Valeria é a ética do trabalho, que "rala a bunda 12 horas por dia" na baixa gerência de um hotel de luxo, contraste ao imoral Marcos, que elogia a bunda da própria irmã e não vacila em se valer de uma situação de inferioridade para arrancar uma porcentagem maior do botim; já Juan é o canalha com culpa, o que aplica golpes, mas com o "nobre objetivo" de arrumar dinheiro para a operação de seu pai - ela foge do maniqueísmo fácil: apesar da falta de escrúpulos, é possível nutrir certa simpatia pelo jeito cínico de Marcos, pronto a negar com a cara mais limpa do mundo as acusações mais óbvias contra ele; também é possível implicar definitivamente com Juan, a despeito de suas "boas intenções", porque ele não vacila em mentir descaradamente para conquistar a confiança de velhinhas. Quando a situação limite do grande golpe pinta, o filme decola, colocando o espectador para desconfiar de cada coadjuvante novo que entra na história: qual é o papel daquele assaltante gordo na trama? quem está armando para cima de quem?, sem saber que sutilmente já foi envolvido no rolo, passando a fazer parte do jogo. A memória lembra de imediato Golpe de Mestre (o filme que reabilitou o ragtime de Scott Joplin) e aquele filme antigo do Mamet, mas se agora não temos Paul Newman e Robert Redford, contamos com malandros à vera, e se o final não é tão inventivo quanto o roteiro pedia - devia ter acabado 2 takes antes, na cena do banco - pelo menos guarda o mérito de manter a expectativa do público ao deixar o desenlace para literalmente a última cena.

Porque nasci, nasci para bailar
O lançamento da primeira biografia de Nara Leão pelo Sérgio Cabral, que parece realmente disposto a contar a história da MPB, refrescou uma dúvida que nunca consegui responder: como é que Nara Leão foi alçada à musa da bossa nova? Qualquer livro sobre o período se refre a ela assim. Mas eu sempre me recusei a acreditar que ela o merecesse. Aquele cabelo chanel, aquele olhar de mormaço, aquele sorriso dentuço, sem graaaaaça... Definitivamente, ela não era bonita - muito pelo contrário, aliás, para quem nasceu irmã de Danuza Leão. Basta dizer que ela foi a única musa até hoje cuja parte mais badalada do corpo eram... os joelhos. Musa não tem que ser bonita? Fazia um certo charme diferente, afeito a intelectuais (gente que nunca foi muito boa para escolher musa); Jeanne Moreau não precisa de mais do que um certo olhar perdido em Paris chuvosa à noite, em Ascensor ao Cadafalso, para arregimentar uma legião de fãs. Mas Nara Leão também era sem graça; tímida e sua presença de palco ou cênica é o sem jeito em pessoa. Sua atuação em Quando o Carnaval Chegar é uma aula de anti-interpretação, e olha que ela concorria com os caramujos Maria Bethânia e Chico Buarque. No livro que escreveu, Nelson Mota se vale do jargão anos 90 para explicar o magnetismo que ela exercia: "Nara tinha atitude". Nesse dias em que Attitude é o nome de uma revista mensal inglesa (o que eu mais queria era trabalhar na agência de propaganda detentora da conta dela para fazer um anúncio com o slogan: "Compre a sua Attitude, todo mês, nas bancas"), eu desconfio desse tipo de justificativa, mesmo reconhecendo que seu jeito despojado, rosto sem maquiagem, fizesse uma diferença naqueles tempos ainda bicudos - Lenny Bruce ainda ia em cana por contar piada com palavrão. Feia, sem graça, xôxa... mas por que musa, gente? Qual o motivo? Um amigo de família ligada à bossa nova foi mais pragmático: "Ela era musa porque dava, pô! As outras não davam!" Faz sentido. A Danuza sempre foi conhecida como mulher liberal e liberada, comportamento herdado da criação descontraída de seus pais. Mesmo assim, é de se perguntar: bastava isso, um comportamento anti-usual, para naquela época sempre risível que é o passado recente ("Olha como nós éramos magros, Valdir!") transformar uma moça de família em musa, mesmo que musa de praia e botequim? Que o Cabral me ajude a descobrir essa.

Aspas novamente para meu chapinha João Marcelo, o (de)formador de opinião
"No inverno do Rio a temperatura cai de 38 para 28 graus e tem gente que sai na rua de touca. E de crochê. Voz de prisão para todo mundo!"

Rafael Lima
Rio de Janeiro, 14/8/2001

 

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