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Sexta-feira, 12/8/2005
Flip 2005
Julio Daio Borges

Quando eu escrevi sobre a Flip 2004 (minha primeira Flip), no ano passado, eu usei o título "Parati, Flip: escritores, leitores -e contradições". A Festa Literária Internacional de Parati, para mim, em 2004, era uma novidade e eu tentava dar conta, em um texto, de tudo aquilo. Apelei para as "contradições". Foi a minha saída.

Pois bem, mais de um ano se passou, ocorreu outra Flip, a de 2005, a terceira, eu fui lá e, depois de muito matutar, volto com a mesma conclusão: as contradições. Só elas explicam uma porção de coisas que se passaram pela minha cabeça antes, durante e depois da Flip 2005.

Vamos a elas, às contradições.

A primeira se deu em razão dos ingressos. A Flip 2004, como parece ser toda Flip, foi concorrida e, com a nossa ida na última hora, partimos para o tudo-ou-nada e assistimos a quase a totalidade das mesas (ou palestras ou debates ou seja-lá-o-que-for) na tal Tenda da Matriz (espécie de galpão que retransmite o que acontece, ao vivo, do outro lado do rio, na chamada Tenda dos Autores). Então, em 2005, para não correr o risco de assistir a tudo do lugar que o Ricardo de Mattos chamou de "chiqueirinho", corremos contra o tempo para conseguir, pelo menos, as principais mesas na Tenda dos Autores.

Até aí, nada de mais: um evento concorrido exige uma atenção extra ou, no mínimo, uma preparação de acordo, para conseguir as entradas. Assim, sem confirmação da assessoria de imprensa (que estava atarantada com as requisições de outros jornalistas, que começavam a pulular), parti para a compra, no primeiro dia, no primeiro horário, na Americanas.com. Parece mentira, parece coisa de filme, mas foi assim: abria a venda às 9 (segundo o site), liguei no televendas nesse horário (pois não estava na internet), deu ocupado até às 9h30 (eu sei porque programei a rediscagem no celular), consegui às 9 e 30 e pouco, os ingressos já haviam se esgotado.

Dá pra acreditar? Não dá pra acreditar. Eu fiquei uma arara. Estava no dentista, liguei para a Americanas do shopping Iguatemi, outra "filial" onde os ingressos seriam comercializados, localizei alguém de lá, a resposta: "Nem adianta você vir aqui porque a fila está longa e eu acho que, antes que ela acabe, os ingressos vão acabar - eles [os organizadores] só mandaram uma caixa". O que eu fiz: entrei, no dia seguinte, de novo na Americanas.com e, apesar da alegação da venda ter se encerrado no dia anterior, estavam, de repente, todos os ingressos à venda no site, para todas as mesas, como se fosse mágica. Comprei e esperei três semanas para receber, quase segui para a Flip sem as entradas, fiz o diabo, ameacei ir ao Procon e, na semana anterior à abertura dos trabalhos, os ingressos (que eu já começava a pagar no cartão) chegaram. Sem contar que, a essa altura, eu havia falado cobras e lagartos para a assessoria de imprensa, de tal sorte que, quando encontramos a assessora, já na Flip, com a Matriz defronte, e com os ingressos todos na mão, ela brincou: "Agora você não pode mais reclamar. Aliás, você é a última pessoa que pode reclamar. Você já reclamou muito".

É, eu sou um reclamão, vocês sabem. Mas eu sou jornalista, eu consegui os ingressos todos no final. Então fiquei pensando naquelas pessoas que não são, nem são convidados, nem são da organização, essas coisas. Você, mero mortal, acorda, abre o jornal, e descobre que os ingressos para a Flip vão começar a ser vendidos naquela data. Você, se não acorda muito cedo, acessa ou liga para a Americanas(.com), ou se dirige até o posto de venda, e, súbito, descobre que em meia hora, uma hora, os ingressos acabaram. Como você se sente? Você desiste e não vai mais. Mesmo que o jornal do dia seguinte - em combinação com a Americanas.com - diga que os ingressos se esgotaram ma non troppo, que outros ingressos podem ser postos à venda a qualquer momento, que você deve ficar atento, etc. Você não tem a vida inteira para conseguir os ingressos da Flip. Você desiste e acabou.

Logo, essa é a primeira contradição que eu ia apontar. Como é que um encontro que se pretende uma "festa", a Flip, barra os convidados na porta? Ou então fornece informações tão desencontradas sobre como participar? Ou então - alegação da Americanas.com - implementa um sistema de vendas on-line que não funciona, ou que está sujeito a falhas? O que aconteceu, segundo informações que eu consegui levantar (vocês já tentaram conversar com um atendente de telemarketing?), foi que os organizadores, ou os patrocinadores, ou seja-lá-quem-for, tinham cotas de ingressos postas à sua disposição antes da venda começar. Eles tinham de decidir se iam ou não, quantos iam, se iam convidar mais pessoas - quantos ingressos iam mobilizar afinal. Ocorre que essas pessoas - da organização, das empresas patrocinadoras - não (se) decidiram a tempo, a Americanas teve inadiavelmente de abrir a venda e o resultado foi essa novela (por mim relatada) dos ingressos que iam sendo liberados aos poucos... Resulta que nem todo mundo tem paciência de esperar.

A segunda contradição se refere aos "autores".

Para o público leigo, que passa os olhos na programação, as mesas parecem um todo uniforme e sem deformações, mas o público especializado - grande parte dos freqüentadores da Flip, diga-se de passagem - enxerga uma tremenda heterogeneidade nas mesas e tem, portanto, uma porção de objeções. Os autores jovens querem mais representantes de sua geração. Os autores de uma pequena editora (ou de um editora com uma pequena representação) reclamam de haver muita gente de uma determinada editora (aquela, em quem sempre recaem acusações). Os autores desconhecidos, querem mais eventos... para autores desconhecidos! Os autores conhecidos reclamam de não serem suficientemente badalados; ou de terem sido esquecidos; ou de não serem mais considerados "autores" (escritores de romance, de contos, de ficção...). A moda, anualmente, é falar que fulano, de determinada "mesa", não deveria estar lá, porque não é escritor. Ou que beltrano, que não se lembraram de chamar, foi tremendamente injustiçado, porque é muito mais "autor" do que determinados "autores" da Flip. And so on...

Eu mesmo tive as minhas reivindicações. Depois da Flip 2004, fiquei tão impressionado que quis participar, de qualquer forma, da Flip 2005. Foi uma verdadeira investigação descobrir quem estava organizando a Festa Literária no ano posterior (estavam mudando a organização). Depois de muito insistir, caí no Flávio Pinheiro. O Flávio estava saindo do No Mínimo e mostrou-se simpaticíssimo. Me passou os telefones e tal. Só que não durou. O Flávio foi contratado pelo Estadão (para aquele caderno novo, o "Aliás"). Babau. Nova pesquisa, nova investigação. Não queriam me passar o novo nome, da organizadora, nem sob tortura, nem por um milhão de dólares. Descobri, acho, por conta própria. Por um descuido. Numa ligação para Parati, ou sei lá - não me lembro mais... Era a Ruth Lanna e - adivinhem - eu sugeri uma mesa de autores novos, uma mesa de autores da internet, mas eu não queria ser um dos "autores", eu queria mediar. Ela me despistou dizendo, muito educadamente, que essa mesa - de autores novos - era tradicional na Flip e que, era óbvio, eles iriam montá-la na subseqüente edição. Penso que a Ruth Lanna não respondeu mais aos meus e-mails, eu tive outras preocupações e, passada a primeira impressão, não era, para mim, mais questão-de-vida-ou-morte participar. The thrill is gone...

Mas o que eu queria frisar, sobre a segunda contradição (a dos "autores"), é que, por mais que a organização seja perfeita, por mais que outros nomes sejam contemplados, sempre vai ficar alguém de fora (e sempre alguém vai ser supervalorizado) - e vão surgir novas objeções... Depois da Flip 2005, eu, por exemplo, mantive algumas posições (críticas). Não acho que o Arnaldo Jabor, que compila de ano em ano suas crônicas, seja "autor"; nem o Verissimo (que caminha para o segundo romance); muito menos o Jô Soares. Mas reconheço que sem "nomes" (eu disse "nomes", não disse "autores") um evento assim, que inevitavelmente precisa de mídia (como quase tudo no Brasil), se esvaziaria. Reconheço que, no quesito "autores estrangeiros", recrutar o Salman Rushdie - que serve de fantoche, ou de figurante, até em show do U2 - também fazia parte do espetáculo; e colocá-lo para circular pelas ruas (sem-calçamento-de-Parati), desacompanhado de seguranças ("O homem ameaçado de morte... ali andando sozinho, você viu?"). "Nesta Flip, nós decidimos chamar só autores bons: Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, Philip Roth e Gabriel Garcia Marquez. Você conhece algum?" Talvez o Rubem, por causa das adaptações para a televisão; certamente que não o Dalton "Vampiro de Curitiba" Trevisan; nunca o Philip Roth; e provavelmente - talvez quem sabe - o Garcia Marquez, por causa das suas posições dúbias em relação a Cuba, e/ou (tudo é possível) por conta de Cem Anos de Solidão... E a Flip já chamou autores de verdade: no ano passado, Ian McEwan; neste ano, Paulo Henriques Britto. Mas eles não "atraem" mídia. Com a exceção, talvez honrosa, de Ariano Suassuna (como eu sempre gosto de reforçar, Chico Buarque não é escritor).

A terceira contradição se refere à imagem que querem passar (e que acabam passando) da Festa Literária Internacional de Parati.

No primeiro ano (2003), uma semana ou duas antes da primeira Flip, eu e a Carol calhamos de estar em Parati e vimos parte da movimentação. Se não me engano, eu havia recebido um e-mail divulgando o evento, mas não dei muita bola, como em geral não dou (ou não dava) para eventos literários. Pensei: chamam aquela mesma meia-dúzia de autores, eles expõem suas velhas conclusões desanimadas sobre o mundo, fazem alguma pregação (pregam sempre para convertidos), e todo mundo volta pra casa amaldiçoando o país-de-não-leitores (ou qualquer coisa similar). Acontece que a Flip 2003 repercutiu... Na Flip 2004, a Carol quis ir. Tá bom, eu vou, pensei comigo. Em 2004 estávamos andando desavisados (imagino que em frente à Tenda dos Autores), quando uma câmera do Jornal Nacional registrou nossos passos. No dia seguinte, ou horas depois, eram telefonemas avisando: tínhamos sido avistados, em cadeia nacional. Socorro... Agora, em 2005, é a mesma sensação vertiginosa. Você anda pelas ruas, literalmente tromba nas pessoas (principalmente nas famosas)... A seguir, você chega em São Paulo e tem gente que te olha arregalada: "Mas você estava lá??? Meu conhecido, meu parente, meu amante... também estava lá! Você viu ele ?" Fica uma aura meio estranha. Este ano, eu, por exemplo, estranhava as matérias que os jornalistas disparavam da sala de imprensa, para todo o Brasil e para fora. A mim me parecia que eram sempre num tom acima. Um tom eufórico quando não havia tanta euforia assim no ar. E isso me incomodava. O tom falso. Me incomoda, aliás. Cito mais um exemplo só: praticamente todos os dias nós ouvíamos, das pessoas da cidade, que Parati (leia-se, a Flip) estava mais vazia do que no ano passado (Flip 2004). Qualquer relação entre ingressos e pessoas (primeira contradição) não é meramente casual. Enfim: no fim da Festa, num jornal grande, num jornalão, saiu uma matéria em que se afirmava que se havia quebrado um "recorde" e tal... Mas como (?) se todos os cidadãos de Parati (envolvidos com turismo) falavam o contrário?

Talvez haja uma justificativa para forçar a nota; uma justificativa bem brasileira, aliás. No país do oito ou oitenta, mesmo eventos intimistas (não imagino um evento literário que não seja intimista - a não ser a Bienal, que é esquisitíssima), mesmo eventos intimistas, no Brasil, têm de "bombar", tem de (se) trombetear, têm de competir com o 11 de Setembro, com o tsunami, com os atentados em Londres, com a CPI dos Correios - senão passam em branco; ninguém vai reparar; são um fracasso estrondoso. E ponto; estão condenados. Tchau. Próximo! Assim, para mim (opa, rimou), é uma contradição fragorosa que uma coisa tão delicada quanto - sei lá - ler um livro, que é o contato entre autor e leitor (ou deveria ser), seja propagandeada como se fosse... o Fashion Week; um casamento na capa da Caras (ou separação); um megashow (Live8); uma megaexposição (Guerreiros de Xi'an); um(a) mega-qualquer-coisa (complete com o que achar melhor). Não combina. Não orna. Gera desconfiança. Estranha. Não acha?

Apenas para concluir sobre as três contradições, eu gostaria de dizer que sei o quanto é difícil lidar com escritores e afins (escrevinhadores, wannabes... pior ainda). Eu venho lidando com essa gente há anos. Com livro, sem livro... as diferenças são mínimas. Infelizmente escrever parece fácil. E distinguir uma página ruim de uma boa requer um treinamento simples (nada que alguns meses - como em jornalismo, dizia Francis - não resolvam). Então todo mundo acha que pode escrever, afinal, como disse um blogueiro, é sempre palavra atrás de palavra (!). Não requer dinheiro (eu falo em "infra"), não requer efeito especial, ninguém escreve em equipe, a técnica é de um arcaísmo... remonta à Pré-história (pois, como disse Millôr, quem inventou o alfabeto era analfabeto). Logo, administrar essa fogueira das vaidades (e de pretensões mil) não é bolinho - e, depois de dar essa festa literária, para escritores, de bandeja, ouvir ainda por cima críticas... Vem montar! Vem fazer! Vem organizar a Flip! Eu, como qualquer pessoa minimamente (e literariamente) sensível, me inspirei na Flip. Vi que existe gente "a fim" (digo "a fim de"...). Não vou jogar pedras - só -, porque quero estar nas outras Flips (e quero ser bem recebido). Mas, pessoalmente (quem me conhece ou quem me lê, sabe), não acredito em quem joga muito confete. E em quem recebe muito confete. Quero que a Flip cresça (no bom sentido); quero que a Flip evolua. Anotei que quando um evento (ou uma coisa) cativa as pessoas, elas se sentem parte dele... e querem participar, e querem (talvez em sua inocência/ignorância) aperfeiçoar aquilo. Ad infinitum. E eu acreditei que dando um depoimento franco e honesto acrescentaria muito mais do que uma porção de notas laudatórias que vi por aí... Eu - como qualquer pessoa que raciocina - presto atenção nas críticas. Mormente nas de pessoas esclarecidas ("Afinal de contas, você não se cansa de [se] dar auto-entrevistas?").

Para ir além
Leia as minhas anotações, a quente, produzidas durante a Flip 2005.

Nota do Editor
Todas as fotos são de autoria de Ana Carolina Albuquerque.

Julio Daio Borges
São Paulo, 12/8/2005

 

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