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Quarta-feira, 10/8/2005
O produto humano
Ana Elisa Ribeiro

Não sei o que foi que projetaram em mim que deu nisso que eu sou. Ou será que não projetaram nada? Talvez tenham projetado algo melhor, muito melhor, e eu tenha executado apenas parcialmente o que queriam que fosse perfeito. Ou talvez não tenham podido imaginar algo tão bom e o projeto soe, hoje, como um rascunho muito tosco de algo que não poderia ser melhor.

O mais importante, no entanto, desconfio eu, é compreender as pessoas como elas são. E mais importante do que isso, deixar que elas cresçam com os viços e os galhinhos podres que todos ostentam à medida que se tornam gente.

No final de semana, numa reunião de professores, ouvi alguém dizer, publicamente, que a faculdade poderia formar um "produto humano" adequado às demandas do mercado de trabalho. Aquela expressão me incomodou tanto que cheguei a cutucar o colega ao lado, que eu não conhecia, para comentar a esquisitice da frase. "Produto humano", "produto humano". E está na minha cabeça até hoje esse contra-senso. Como é que alguém, em pleno desenvolvimento, pode ser "produto"?

Em várias áreas do conhecimento, as pessoas, os professores, os cientistas e os alunos têm lutado para tratar os fenômenos e os objetos de estudo como processos ou como "recortes" de algo maior. Que eu saiba, enquanto estamos vivos, estamos, necessariamente, "em andamento". Embora eu conheça várias pessoas que pensam que já morreram ou tentam ser assim, a cada vez que as vejo, posso notar uma diferença nos cabelos, uma ruga a mais, uma idéia que não havia antes, um ponto de vista mudado ou reconfigurado. E então, tenho para mim que, mesmo que a "figura" se ache espetada numa lápide, não o está. Se é vivo, ainda não está fechado, acabado e morto.

Daí que muita gente tem tratado os processos como a melhor forma de encarar a maior parte dos eventos que acontecem, tanto na natureza, no meio ambiente, quanto com o ser humano. Fala-se em processo de ensino/aprendizagem, processo de escrita, processo de leitura, processo, processo. E então os produtos, coisas prontas e bastante estagnadas, não podem ser confundidos com pessoas e seus desenvolvimentos, sejam eles físicos ou mentais.

E então fiquei pensando o quanto seria prejudicial se uma faculdade se preocupasse em formar "produtos humanos"! Pessoas que poderiam se considerar prontas para um "mercado" muito mais dinâmico do que elas!!! Alguém se forma, encontra um nicho nesse tal "mercado" (conceito metafísico, quase) e em uma semana (quando muito!) já perdeu o bonde das mudanças que acontecem no mundo e com as pessoas, os colegas de trabalho, os clientes, os amigos, a esposa, os filhos e até mesmo com as plantinhas do jardim.

Alguém projetou em mim o sonho pequeno-burguês de ser esposa de um bom rapaz, ter uma profissão dessas que sempre estiveram nas listas das melhores famílias, manter a ética com parentes e amigos, morar numa casa com jardim e garagem para dois carros, ter filhos bonitos e fazer as compras do mês. Algo disso se esvaiu, outro tanto aconteceu conforme o modelo. E quando as coisas começavam a sair do molde, as balizas morais da família e dos amigos tentavam atenuar o desvio. Maior medo de todos, no entanto, era ver a filha crescer. O desenvolvimento choca um pouco. Exposição, desconhecido, novidade, surpresa. Tudo isso tem ares de coisa ruim. Daí a vontade de prender os filhos nos pés, calçá-los com o medo e mostrar a eles principalmente os exemplos que deram errado.

Dia desses, pensando em processos, imaginei que deveria ter gritado várias vezes: me deixem crescer. Mas não pude. Olho para meu filho e tento treinar meu amor mais instantâneo, sem grandes projeções que o tornem mais próximo do produto do que do processo. Enquanto ele brinca e aprende por tentativa e erro (sem desistir, diga-se de passagem), fico tentando não adiantar os processos dele, não meter as mãos e fazer por ele, não dizer em seu ouvido, antes que ele tente, que "não vai dar certo" e nem morrer de culpa quando ele dá lá suas cabeçadas. E como é difícil!

Mais difícil para as pessoas talvez seja gostar das outras em processo. Todos em processo. Mesmo os casais mais apaixonados, que se casam pensando em se tornar um "casal-produto", podem se desenvolver, tanto em dupla quanto individualmente, fazendo do processo uma parceria. Mesmo os irmãos criados no mesmo ambiente, gêmeos, que seja, não obedecem às mesmas guias e se fazem conforme balizas-mestras diferentes. Conheço ex-casais que, tenho certeza, são "ex" justamente porque cada qual se moveu em processos distantes demais. Outros casais, que ainda não são "ex", mantêm o status justamente porque um continua em processo, o outro faz o possível para ser produto.

E então me dá vontade de dizer àquele colega: "produto humano"? Só se for no seu laboratório! O "mercado" há de demandar pessoas que sabem reconfigurar suas "redes", seus critérios, seus conhecimentos e suas habilidades. Pessoas em pleno processo. Pessoas que estão.

Nota do Editor
Sobre o mesmo assunto, leia "A arte de se vender" de Daniela Sandler.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 10/8/2005

 

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