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Sexta-feira, 19/8/2005
Algumas leituras
Eduardo Carvalho

Um dos maiores prazeres que tenho é o de ler uns dez livros simultaneamente. Claro que não leio todos com o mesmo ritmo, com a mesma regularidade ou a mesma atenção. Não tem problema. Cada livro exige uma velocidade, um cuidado na leitura. Trato cada um da sua maneira. Leio alguns anotando página por página, pregando post-its e decorando passagens; leio outros suavemente, do táxi ao clube, despreocupado se à noite já terei me esquecido do que li de manhã. Acho bacana misturar Plutarco e Allan Poe, Turguêniev e o The Hedonist's Guide to Tallin. Neste domingo, voltei mais cedo da praia e - empolgado com a quantidade de livros ao lado da minha cama - comecei a ler poucas páginas de cada um. E reli seqüências encantadoras, de autores e sobre assuntos totalmente diferentes.

O último livro que terminei está também junto com esses outros. É que continuo procurando os seus parágrafos mais marcantes. Eu já estava deslumbrando com Henry James, depois de ler The Europeans e Washington Square. Desconfiava que nenhum outro espírito pudesse ser mais fino do que o que escreveu esses pequenos livros. E as páginas que li de Portrait of a Lady me pareceram impecáveis - principalmente pelo ambiente. E passei semanas deslumbrado exatamente com esse aspecto do livro do Colm Tóibin, que descreve, digamos, romanceadamente talvez o período mais interessante da vida de Henry James. Abro agora o livro - O Mestre - numa página marcada, e encontro o motivo pelo qual James não conseguia situar seus romances na Nova Inglaterra: "Não havia soberano, nem corte, nem aristocracia, nem serviço diplomático, nem nobreza rural, nem castelos, nem herdades, nem velhas casas de campo, nem presbitérios, nem chalés com telhados de sapé, nem ruínas cobertas de hera; nenhuma catedral, abadia ou igrejinha normanda; nem literatura, nem romances, nem museus, nem quadros, nem sociedade política, nem classe esportiva. Para os romancistas, ele pensava, se essas coisas ficam de fora, tudo fica de fora. Não há sabor, não há vida a ser dramatizada, apenas escassez de sentimento representada por uma escassez de tradição".

O livro de Colm Tóibin exprime com precisão essa atmosfera em que vivia e sobre a qual escreveu Henry James. O Mestre tem o espírito da melhor literatura combinado com o estilo - com a descrição viva, forte - das mais famosas reportagens. Não há nenhuma linha em excesso; a principal marca do livro é a sua sutileza, a sua elegância, presente na prosa de Tóibin e na vida de James: a fluência do livro é quase mágica, porque transporta em silêncio o leitor para o cotidiano de James, ao mesmo tempo calmo e inquieto. Em Um peregrino apaixonado, aliás, encontrei praticamente todos os lugares pelos quais passei em janeiro, em Oxford: "Nenhum outro lugar na Europa, imagino, arranca de nosso bárbaro coração tamanha admiração apaixonada.". Os passeios eventuais pelos jardins do Christ Church - "o cenário à beira-rio mais doce, constante e juncado que o coração pode desejar" -, os chás em frente ao New College - "perecem lugares apropriados para que descansemos eternamente sobre o gramado, na ditosa esperança de que a vida não passe de um vasto jardim inglês e o tempo, de uma eterna tarde inglesa" -, e sobre o muro do St. John's, em frente ao apartamento em que fiquei: "essa sensação de isolamento atingiu o clímax, segundo me lembro, na última das três tardes, quando quedávamos sonhadores no jardim espaçoso do St. John's. De todos os lugares, a alta fachada desse college é a que mais imprime ao relvado um ar de propriedade". E assim continua a aventura do Peregrino Apaixonado pela Inglaterra.

Proust também escreveu - de forma absolutamente diferente, claro - sobre esse ambiente elegante e decadente, que serviu para muitos autores explorarem várias dimensões dramáticas. Releio agora Os prazeres e os dias, uma coleção quase juvenil de contos, ensaios e poemas que Proust escreveu entre 20 e 23 anos. A capacidade de expressar com lucidez sentimentos obscuros é evidente em todas as páginas de Proust. Já a abertura do livro - dedicado ao seu amigo Willie Heath - captura a essência dos personagens de Van Dyck: "A elegência deles, na verdade, como a sua [do seu amigo], reside menos na vestimenta do que no corpo, e o próprio corpo deles parece tê-las recebido e continuar incessantemente a recebê-la da alma: é uma elegância moral". Proust descobre expressões - como "elegância moral" - que às vezes nos parecem inéditas. Uma outra: "Jamais pintei a imortalidade senão em pessoas de consciência delicada. Muito frágeis para desejar o bem, nobres demais para deliciarem-se com o mal, não conhecendo senão o sofrimento, só pude falar delas com uma piedade demasiado sincera para que não purificasse estes pequenos ensaios". Apenas escrevendo "consciência delicada" Proust nos apresenta sensações raras, de uma categoria espiritual sempre difícil de encontrar.

E foi Os prazeres e os dias que inspirou - pelo menos no título - Os livros e os dias, de Alberto Manguel. Com o subtítulo que explica a idéia: Um ano de leituras prazerosas. Manguel seleciona um clássico por mês, e mistura as impressões de suas leituras com o que acontece no seu dia-a-dia. Manguel, aliás, concorda totalmente comigo sobre o resultado da leitura no que fazemos na vida, digamos, mais prática: "Uma passagem de um romance iluminava subitamente um artigo do jornal diário; um episódio já quase esquecido era reavivado por uma cena; uma simples palavra incitava uma longa reflexão. Decidi fazer um registro desses momentos". E esses momentos são deliciosos. Manguel é um leitor erudito - cheio de citações e referências - que é, e gosta de ser, acessível ao leitor comum. Não há nenhum jargão nem pedantismo em seu estilo. Muito ao contrário: sua prosa aberta, sincera, é até engraçada: "Com seu sistema de trânsito decaído e preços abusivamente altos, Londres deve ser uma das cidades mais desconfortáveis do mundo para alguém com pouco dinheiro para viver. Com que meios de propaganda o Conselho de Turismo Britânico convenceu o mundo de que as coisas não são assim?". E uma das boas frases do livro, sobre um tema que faz sofrer os mais insensíveis à literatura: "A experiência da vida cotidiana é negada pelo que queremos que ela seja, pelo que esperamos que ela de fato seja."

Outro escritor de sensibilidade finíssima - de um apuro estético imbatível - é John Ruskin. A capacidade de observação de Ruskin fascinou Proust, que traduziu As Pedras de Veneza para o francês. Não dá para acreditar que Ruskin escrevia assim - e com essa bagagem - com 26 anos. A vontade é de passar pelo menos um mês na cidade, com o livro em punho, prestando atenção em todos os detalhes que escapam quando passamos com pressa por Veneza. Ruskin é enfático na importância da cidade: "Seria difícil superestimar o valor das lições que o estudo aprofundado dessa estranha e poderosa cidade pode proporcionar". O Palácio de Ducal é "o pivô da arquitetura mundial". E a arquitetura, para Ruskin, tem um valor excepcional: "embora pouquíssima gente cuide de estudar seriamente a pintura, quase todos os homens, num momento de sua existência, tiveram de se haver de uma maneira ou de outra com a arquitetura. Não há grande mal em que um indivíduo perca duzentos ou trezentos francos comprando um quadro ruim, mas é lamentável que uma nação perca duzentos ou trezentos mil fazendo uma construção ridícula." Ruskin tem seus momentos mais literários - "Lastimo aqueles cujo coração já não é acessível às generosas caridades da imaginação" - e os mais divertidos, como quando destrói sistematicamente a arquitetura renascentista: "A inferioridade da obra da renascença é menos fácil de ser provada do que a inferioridade moral de seus operários". E principalmente as suas observações mais reveladoras: "Quase todos os quadros das galerias da Europa moderna foram mais ou menos deteriorados por uma ou outra dessas restaurações, na exata proporção dos valores que lhes é atribuído. E, como as obras menores e mais acabadas são geralmente as menos boas, o conteúdo de nossas galerias mais célebres na realidade tem pouco valor".

Questão de Estilo

Meu sonho seria, se fosse escritor, ter o estilo de vida de Vargas Llosa e o estilo literário de Álvaro Lins. Essa seria uma combinação deliciosa. Vargas Llosa sofre ainda, injustamente, com a imagem batida do escritor latino-americano. Sua obra, em grande parte, explica essa associação. Mas Vargas Llosa me parece, como personalidade, bem mais interessante do que os seus livros. Seus artigos no El Dia ilustram isso: pulando da moda entre os surfistas numa cidadezinha na costa do Peru ao encontro com um velho num sebo em Paris; de Picasso ao Iraque; de Georges Bataille a Henri Matisse. Vargas Llosa é flagrado com a família no camarote da Brahma no carnaval do Rio; está pesquisando um assunto remoto numa biblioteca em Roma; passeia sempre pelo parque em Madri, pelas manhãs, e escreve à tarde. Concorreu à presidência do Peru, ficou rico - ou quase - escrevendo livros e, tenho a impressão, deve se retirar à tarde para tomar um chá. A coletânea mais nova de seus ensaios literários, A verdade das mentiras, é um deleite: com textos sobre Gatsby e Bellow, por exemplo, imperdíveis. Para não falar do último ensaio, "A literatura e a vida", uma defesa necessária e eloqüente da literatura; e da abertura, que fala tudo: "Sonho lúcido e fantasia encarnada, a ficção nos completa - a nós, seres mutilados, a quem foi imposta a atroz dicotomia de ter uma única vida, e os apetites e as fantasias de desejar outras mil".

E o estilo de Álvaro Lins - de quem estou lendo O relógio e o quadrante - é diferente, e me parece o que Vargas Llosa deveria ter em seu texto: "Uma tendência que está se firmando no implexo das nossas consciências artísticas - e bem gostaria de vê-la tomar corpo para vencer - é a da valorização do estilo; a da importância da "forma" na obra literária". É fascinante, por exemplo, quando ele escreve sobre Hemingway: "E parece-me que nenhum destino mais feliz existe para o escritor do que este de Hemingway: o de se comunicar com o povo sem trair em nada a dignidade e a missão de sua arte literária". E acho gozadíssmo quando Álvaro Lins - num comentário difícil e perfeito - abre seu texto sobe livros de viajantes assim: "O espírito do verdadeiro viajante é um espírito de aventura, de poesia e de romantismo. Raramente, no entanto, o livro de viagem terá estas mesmas características". Depois, explica a impossibilidade de um livro de um viajante alcançar a categoria dos grandes livros. Não preciso defendê-lo, como viajante ou diplomata: se Missão em Portugal, aliás, estivesse nessa categoria - na de livros de viagem -, talvez até alcançasse o título. O estilo de Álvaro Lins é natural e envolvente até um ponto quase sobrenatural. Seus textos parecem discursos prontos; não precisam de nenhuma adaptação para serem lidos em voz alta. São de uma naturalidade cristalina, que - me parece - deve estar proibida tanto nos maiores jornais como nas academias. Ninguém escreve mais assim.

Álvaro Lins foi crítico profissional; provavelmente o maior que nasceu aqui. E não há um livro seu disponível nas melhores livrarias. Isso não são modos de tratar a literatura! Vargas Llosa, como escritor, vendeu muito, mas me interessa pouco. Suas observações sobre a literatura e sobre a vida, no entanto, são perfeitas, mesmo que às vezes não pareçam grandes novidades. É trabalho do escritor relembrar verdades que, de vez em quando, esquecemos. E um escritor assim - combinando Álvaro Lins e Vargas Llosa - repetiria este tipo de verdade: como a de que a vida pode ser expandida pela literatura, mas não se encerra nela.

Para ir além











Eduardo Carvalho
São Paulo, 19/8/2005

 

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