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Terça-feira, 6/9/2005
Têm sido tempos difíceis...
Daniela Castilho

Recebo um e-mail de convocação do Julio, Editor deste Digestivo, para escrever sobre o mensalão e toda essa confusão política que tem acontecido no Brasil. Vocês que nos lêem não sabem, mas o Julio, quando nos convida a escrever sobre um determinado assunto, geralmente manda um texto escrito por ele na frente, para estimular os Colunistas a abrirem a verborragia. Normalmente, eu não preciso disso; tirando o excesso de coisas que tomam meu tempo, escrevo com satisfação. Mas nesse caso, sobre esse assunto, o empurrão do Julio foi importante. Leio o texto dele e suspiro. Suspiro porque sei exatamente do que é que ele está falando, porque ainda sou um pouco mais velha que ele, muito mais cínica e sarcástica que ele, e, com certeza, de muito mais mau humor.

Já sei, quem toma chá comigo lá no meu blog vai rir - "imagine, Dani, só te leio lá no chá de bom humor, no máximo triste de vez em quando". Não, meus amigos, eu tenho um mau humor crônico há alguns anos. Um dos problemas talvez seja ser filha de velho comunista. Esse ano faz exatamente 20 anos que meu pai morreu. Fui criada, ao contrário da imagem dos atuais desencantados comunistas pós-muro ou dos comunistas comedores de criancinha pós-Guerra Fria, com um conceito de comunismo que não se ouve falar há muito tempo: o tal do marxismo utópico. Eram baldes e baldes de ideologia. Eram pessoas que acreditavam que podiam mudar o mundo e que, para isso, bastava, acima de tudo, ter fé, como se os livros do senhor Carlos Marx fossem uma espécie de Bíblia política: acredite, tenha fé e tudo mudará.

Quando eu tinha uns 14 anos de idade, os grêmios estudantis e a UNE eram proibidos. Meu pai, aquele velho senhor músico e comunista, teve que vir para São Paulo fugindo da famosa "Redentora" ou o Golpe Militar de 1964. Hoje em dia, a razão principal que ocasionou a vinda dele para São Paulo deve parecer muito curiosa aos olhos de quem tenha menos de vinte anos de idade e, principalmente, de quem não tem pais comunistas: meu pai era do CPC da UNE. Pois é. Aquele moço que virou prefeito em Nova Iguaçu foi da UNE e ninguém nunca pensou em levar ele preso nem proibi-lo de fazer passeatas ou coisas assim. Mas quando eu tinha meus 14 anos de idade, fazer eleição da UNE dava cadeia, e fazer passeata dava cadeia com direito a polícia jogando bombas de efeito moral.

O que isso tem a ver com o atual mar de lama que afoga o PT? Tudo.

O PT nasceu de dissidências. Aliás, o PSDB também nasceu de dissidências. Nos tempos da ditadura, tinha uma curiosa lei chamada Lei Falcão e mais um monte de leis que transformaram o horário eleitoral em mera apresentação estilo powerpoint com fotos, os números de candidatos, seus nomes e os partidos. E só existiam dois partidos: a Arena e o MDB. Basicamente, era um jogo maniqueísta, bem ao gosto do brasileiro, que adora um maniqueísmo: a Arena era formada por reacionários, os direitistas, os militares, os ditadores. Já o MDB era dos esquerdistas, os civis, os democratas. Nada como um mundo maniqueistamente simples para simplificar o raciocínio. Um eram os caras maus e o outro eram os caras bons. Só que com a tal abertura para a democracia em 1984 - dá-lhe senhor Orwell - ficou confuso ter só dois partidos. Foi liberada a criação de legendas e então começamos a ter essa coleção de siglas - PL, PFL, PSD, PSDB, PTB, PT e sei lá mais o quê. O PSDB e o PT eram as dissidências. Gente do PC que se desentendeu com o PC do B foi para um ou para outro. O mesmo aconteceu com pessoas do antigo MDB e agora PMDB, etc. Ficou complicado ser maniqueísta em um mar de legendas.

O problema é que o brasileiro passou centenas de anos sendo maniqueísta. Dá-lhe índios versus portugueses, escravos versus senhores, militares versus civis, nordestinos versus sulistas, palmeirenses versus corintianos, mocinhas da novela das oito versus peruas jararacas. O brasileiro não apenas adora maniqueísmo, mas em sua preguiça mental adota rapidinho um bom maniqueísmo porque é mais simples, e dá uma preguiça, porque amanhã vai dar praia, depois tem churrasco na casa da sogra, tem final de campeonato de futebol, etc.

Confesso que desde os meus 18 anos eu sou tucana. Votei com orgulho no saudoso Mario Covas duas vezes, votei em Fernando Henrique para presidente - e votaria nele novamente sem pestanejar -, votei no Alckmin, votei no Serra. Votei também na Marta, do PT, basicamente porque não queria ver Maluf de prefeito de novo, ainda mais depois da infeliz seqüência dele e do Pitta na prefeitura de São Paulo, apesar de ter me arrependido disso muito rapidamente. Votei no senador Suplicy duas vezes - na minha opinião, um dos melhores senadores que esse país já teve. Também votei na Erundina, uma das melhores prefeitas que São Paulo já teve, e ela era do PT na época. Nunca tive nada contra o PT em particular, entendem o que eu quero dizer? Para mim, era um partido radical demais e por isso não gostava dele, mas também não achei que fossem se revelar um bando de corruptos e corruptores.

Sabem, eu não sou maniqueísta. Nunca fui. Talvez porque tenha tido um pai comunista, porque tive um avô materno anarquista, porque vi o PT nascer recheado de sindicalistas, MR-8 e outras criaturas curiosas da política nacional, porque lembro bem do Brizola e do Jânio. Nunca enxerguei política como se fosse um jogo de futebol. Sempre fui tucana, agüentei quieta as pessoas que votaram em FHC depois se virarem contra ele, num movimento que, na minha opinião, foi muito mais orquestrado pela mídia do que outra coisa. Acho curioso como as pessoas simplesmente esqueceram de que se não temos mais inflação de 40% ao mês e o dólar está estável há uma década é graças ao PSDB e ao Fernando Henrique Cardoso. Dizem que brasileiro não tem memória, né?

Faz dois anos que estou quieta. Estou quieta porque, assim que o PT assumiu o governo, a galera que trata política como futebol começou a me jogar pedras, mandando eu ficar quieta porque sou tucana. Tenho alguns petistas na família e tive que escutar agressões verbais absurdas deles só porque não sou petista.

Teve gente até que me chamou de direitista. Simplesmente parei de falar com essas pessoas. Se elas querem ser politicamente maniqueístas, então, não vou gastar meu tempo com elas, porque, que me desculpem, mas todo maniqueísmo é burro.

Vejo esse mar de lama afogando o governo do Lula e não falo nada. Não, eu não sou de direita, nunca fui. Sempre fui a favor do bom senso, assim como sempre fui a favor da ética, da liberdade de pensamento e de opinião, de viver bem e à vontade, podendo falar as coisas que penso. Infelizmente eu não nasci num mundo assim, eu apenas sonho com ele.

Assim como falar o que se pensava durante os anos da "Redentora" significavam cadeia, tortura e morte, nesses anos petistas falar o que se pensa significou, para mim, ser patrulhada ideologicamente, sofrer ameaças de sanções, de perder trabalhos, porque, afinal, todo mundo é petista, né? Brasileiro gosta de torcer para time que está ganhando e odeia time perdedor. É tão difícil ser tucana em tempos petistas quanto ser corintiano em final de campeonato que está dando São Paulo e Palmeiras na final. Você corre o risco de apanhar no estádio. Mas deixa pra lá. Estou ficando cada dia mais velha e mais mal-humorada.

A minha vida piorou incrivelmente nos últimos anos. Perdi muito dinheiro, perdi clientes, tive que mudar de área de novo, apesar de continuar a ser diretora de arte, tive que caçar emprego, suportar muita gente prepotente que me ameaçou com violência... Têm sido tempos difíceis.

E vai ver a culpa é mesmo do PSDB, aqueles tucanos bicudos de direita traidores da pátria, porque, afinal de contas, não tem mar de lama nenhum, o PT é inocente, o Lula vai terminar o mandato, o Duda Mendonça vai fazer a próxima campanha do PT, o Marcos Valério vai pagar todo mundo direitinho, o Fome Zero finalmente vai decolar, a Marta vai fazer outra plástica e concorrer ao governo de São Paulo, os impostos talvez sejam aumentados para 60% para pagar essa festa toda e tudo vai acabar em pizza.

Nota do Editor
Daniela Castilho é designer, diretora de arte e assina o blog MadTeaParty.

Daniela Castilho
São Paulo, 6/9/2005

 

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