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Sexta-feira, 2/9/2005
Um rancho e um violão
Eduardo Carvalho

Assisti a três filmes recentemente que me marcaram muito: Barry Lyndon, Leopardo e Dois Filhos de Francisco. Não acho que estão todos na mesma categoria. O primeiro foi uma lição estética; o segundo, um discurso moral; já Dois Filhos de Francisco foi principalmente uma educação sentimental. A história de Zezé di Camargo & Luciano é um exemplo de como a esperança e a persistência individuais podem superar os limites de um ambiente pequeno. O que menos importa no filme é se a música deles é boa ou bonita. As principais dificuldades da dupla são muito parecidas com a de muitos grandes artistas, ou, se quiser, pessoas de sucesso - falta de apoio inicial, mesmo dos amigos e do público; pouco ou nenhum dinheiro para bancar o risco do começo; acidentes traumáticos que quase enterram sonhos. A experiência de Zezé di Camargo & Luciano não é restrita ao universo musical nem sertanejo. O drama da dupla é universal.

Dois Filhos de Francisco tem todas as características para ser maltratado pela crítica mais decente. A história é convencional e sentimental. Uma família da roça, pobre e enorme; um pai que quer que os filhos se destaquem na música para sair da mediocridade, e se dedica incansavelmente a isso; um dos meninos que formava a primeira dupla da família morre; o outro segue uma carreira de pequeno sucesso, solitária; até que um terceiro irmão propõe uma parceria, eles formam outra dupla e - sempre com a força do pai - se transformam em Zezé di Camargo & Luciano. O enredo é banal. Mas o que importa é que ele é verdadeiro, real. E por isso é impressionante. É um clichê, por exemplo, a cena dos dois meninos cantando na rodoviária, tristes, e aos poucos emocionando as pessoas em volta. Só que aconteceu assim. E se a arte proíbe cenas batidas e é, na essência, inimiga dos clichês, a vida está cheia deles. Ou milhões de pessoas não teriam se encantado com uma música chamada "É o amor...".

Eu gostaria muito, aliás, que esse estilo sertanejo, brega como é, fosse mais bem recebido por quem comanda o bom gosto musical no Brasil. Fiquei contente, portanto, que Caetano Veloso tenha assinado a trilha sonora do filme. Mas essas duplas merecem mais. Tem muito samba fraco, por exemplo, que é respeitado - especialmente por quem se considera elegante - só porque vem do povo. E a música sertaneja moderna, contemporânea, é desprezada com insistência, porque se romantizou e se misturou com country para vender mais. Quer dizer: para se adaptar ao "gosto do povo". Não vejo problema nenhum nisso. Quem se diz com gosto variado, elástico, que gosta tanto do erudito quanto do popular, precisa entender que não há nada mais popular do que esse romantismo caipira.

Zezé di Camargo & Luciano são muito mais autênticos do que a maioria dos cantores de suposta qualidade que apareceram ultimamente. O sorriso e o choro dos seus fãs - nos shows e, agora, nos cinemas - é impossível de ser simulado. São sempre expressões honestas, de gente que trabalhou e sofreu, e que se identifica com a historia da dupla. Não me interessa se o cinto do Luciano é cafona ou se ele deveria abotoar a camisa dois furos acima. Não importa que as notas e os versos de suas musicas sejam simples. A emoção despertada é verdadeira. Estamos todos liberados para chorar no final.

Não existe outra igual no sertão

Há três anos eu não ia para a Festa do Peão de Boiadeiro de Barretos. O auge da Festa foi de 97 a 99, quando ainda, quem se lembra?, existia os Amigos: Leandro & Leonardo, Chitãozinho & Xororó e Zezé di Camargo & Luciano - todos juntos no palco. É engraçado como ainda hoje, em São Paulo, esbarro com gente que estava naquele show relâmpago do Garth Brooks, em 98. Você encontrava lá aquele pessoal com quem estudou na escola, os amigos do cursinho, do clube; os amigos dos amigos e aquelas pessoas que você vê em todos os lugares, mas não sabe o nome. Os ranchos estavam cheios de atores, cantores, jornalistas, empresários famosos. A gente saía de São Paulo na sexta-feira à tarde, com motorista, para aproveitar a noite de sexta e o fim-de-semana em Barretos. Nos postos de gasolina, na estrada, você já ia falando com todo mundo.

Depois parece que a moda country desapareceu; ficou brega. Barretos lotou ainda mais e a Festa cresceu mais rápido do que a sua estrutura suportava. Pegou fama de ser uma bagunça e de só ter homem. Conseqüentemente - em 2000, mais ou menos -, a freqüência diminuiu. Eu mesmo, como disse, não estive lá nos últimos anos. Mas sabia que o modelo da Festa foi melhorando. Como se fosse para, agora, na comemoração de 50 anos, a Festa de Barretos se recuperar integralmente. Fiquei contente em ver o Rodeio lotado; em rever amigos que há anos não passavam por lá; em reparar que o Parque do Peão está mais limpo, organizado. Muita gente em São Paulo querendo voltar a (ou conhecer) Barretos.

Talvez a novela tenha ajudado. Só que a Festa não atravessou 50 anos se apoiando em moda apenas. A principal atração, desde que tudo começou, é o rodeio. Que é uma espécie de mistura de carnaval com tourada. Muita música, muito barulho, muita propaganda, muita gente, num ambiente que, para uma única pessoa, é de altíssimo risco. O clima do evento é interessante, curioso. Não tem nada igual em nenhuma cidade grande nem em outro país. Aquele Brasil profundo, simples e honesto, aliás, que muita gente procura nos cinemas de São Paulo, está praticamente inteiro em Barretos. Basta ir lá e ver.

Enquanto isso, na capital

A abertura do Feira de Arte e Antiguidade do A Hebraica, dia 16 de agosto, estava completa. Nenhum estereótipo paulistano faltou. O banqueiro em silêncio, a decoradora escandalosa, o curador amigo-de-todo-mundo, o professor colunista da Veja, as senhoras plastificadas, o artista que mora em Paris, o técnico do Palmeiras - estavam todos lá. Faltou aquela galeria de Nova York, que no ano passado trouxe Picasso e Chagall para vender em São Paulo. Neste ano, um rabisco de Renoir, um óleo sobre madeira do Guignard, vários Di Cavalcanti, Volpi, Carybé, Portinari, Pancetti. Alguns móveis e esculturas art déco bacanas. Tudo convencional demais. Inclusive o Museu Afro Brasil, que expunha em sala especial. E muito pequena a homenagem a Berlim, pela abertura que o tema - a cidade - permite. Podia ser diferente?

Eduardo Carvalho
São Paulo, 2/9/2005

 

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