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Terça-feira, 20/9/2005
Instinto de Repórter
Fabio Silvestre Cardoso

Escândalos como o do Mensalão costumam ser um prato cheio para a mídia. E isso é ponto pacífico tanto para os críticos naturais da imprensa como para aqueles que acompanham, ávidos por novidades, o noticiário. Entre esses dois grupos, no entanto, há uma cisão. Os primeiros acreditam que a imprensa age pelo "quanto pior, melhor"; já os segundos vêem a mídia como forma de esclarecer a população a respeito dos assuntos que estão na ata do dia. Na avaliação deste colunista, deveria existir mais um ponto de consenso. Quando o trabalho da imprensa é bem feito, quem sai ganhando não é só o jornal, porque conseguiu solapar a concorrência, nem somente os acusadores da vez, mas, sobretudo, a sociedade, porque o trabalho do jornalismo bem realizado é um dos pilares das democracias bem estabelecidas, uma espécie de tipo ideal.

O parágrafo anterior, com efeito, é uma espécie de tipo ideal. Como se sabe, o jornalismo não com o mesmo rigor em todos os casos. Em algumas coberturas, aliás, sobram opiniões e faltam investigação, apuração e observação crítica daquilo que se vê. Sob essa perspectiva, é estimulante que a jornalista Elvira Lobato, do jornal Folha de S.Paulo, tenha publicado, recentemente, Instinto de Repórter (Publifolha, 288 págs.). Trata-se de uma coletânea de reportagens assinadas por ela, onde o leitor poderá ver o jornalismo investigativo levado às últimas instâncias. Em 11 casos exemplares, Elvira traça um panorama de seus 20 anos de atuação no árduo campo da reportagem, gênero muitas vezes ingrato pelo esforço que demanda, mas igualmente prazeroso pelo resultado que proporciona aos leitores.

Sobre as reportagens, vale a pena ressaltar que não são textos notórios por seu estilo elegante ou literário. Elivira não faz novo jornalismo. O destaque deste livro são os instigantes bastidores, os making-ofs, relatados pela autora. O leitor tem a real dimensão dos percalços e dificuldades na apuração de uma denúncia, um processo que pode demorar mais do que se imagina. Tome-se como exemplo o primeiro texto selecionado. A jornalista, a partir de um telefonema recebido por uma fonte, passa a investigar a existência de um projeto para um programa nuclear brasileiro na Serra do Cachimbo. À época, a Folha noticiou o caso com exclusividade, mas foram necessárias duas semanas de apuração para que o texto ficasse pronto. No livro, a autora relembra todos os pontos que marcaram aquela cobertura, desde o receio das testemunhas envolvidas até o fato de ter de permanecer na Redação até o fechamento da edição nacional da Folha. Cabe destacar, aqui, o fato de Elvira ser nesse momento uma repórter bem avaliada pelo jornal, mas que ainda não assinava o nome em todos os textos - só nas matérias exclusivas. Pode-se entender, então, que essa reportagem foi o estopim para seu desenvolvimento em coberturas investigativas para o jornal.

Há uma lacuna considerável de tempo entre a primeira e a segunda reportagem publicada no livro. O segundo texto data de 1989 e, desta feita, a jornalista investe em uma cobertura sobre a República dos Usineiros, um caso que envolvia o então candidato à presidência da República Fernando Collor de Mello. Além de trazer o histórico do caso, Elvira faz nesse texto ressalvas interessantes no que concerne às suas técnicas de investigação. Trata, por exemplo, da necessidade da especialização em um determinado assunto para que o repórter não seja traído pelo desconhecimento. Na reportagem em questão, ela mostra como foi importante o fato de ter estudado a história e a legislação do ramo açucareiro. E, mais do que isso, por iniciativa própria, não tanto do jornal. Nesse sentido, a frase a seguir não poderia ser mais precisa: "Ninguém consegue escrever de forma simples aquilo que considera complicado".

Nas reportagens subseqüentes, em que pesem a importância das dicas da repórter, o livro atinge seu ponto alto quando aborda a questão ética. No texto sobre a reportagem "O Golpe das concessões da mídia", ela relata quando e porque utilizou métodos pouco ortodoxos na apuração de uma denúncia. De acordo com as palavras da autora: "quando a situação exige, digamos assim, instrumentos pouco ortodoxos de apuração, tomo minha decisão baseada nos seguintes quesitos: o assunto é de interesse público? É jornalisticamente importante? A sociedade ganhará com a revelação desse fato? Se as respostas forem afirmativas, sigo meu instinto de repórter e evito dispersar-me em questionamentos que não irão ajudar meu trabalho". Vale a pena ressaltar que, se não está totalmente de acordo com os manuais jornalísticos, a repórter ao menos revela (os motivos de) sua estratégia aos leitores. Isso é louvável. Do mesmo modo que ela preza que o bom relacionamento com as fontes é crucial para que o jornalista adquira respeito e credibilidade.

Em contrapartida, também é correto afirmar que o material publicado em Instinto de Repórter peca pelo fato de não ser inédito. Não se quer dizer, aqui, que as reportagens não interessam, mas, sem sombra de dúvida, estão fora de seu tempo. A mais recente data de 2002. Em outras palavras, apesar de trazer o dia-a-dia do modus operandi de uma reportagem especial, com informações importantes sobre a leitura de documentos "chatos" (como o Diário Oficial), bem como o trabalho de checagem e busca de dados na internet, os textos em si selecionados para a publicação não geram interesse porque já perderam o sabor da novidade, que é, não por acaso, uma das condições da relevância jornalística.

Instinto de Repórter, mesmo assim, é um alento para o jornalismo brasileiro. Numa época em que a reportagem perde cada vez mais espaço para as "grifes" de opinião, é importante que existam jornalistas afinados com esse gênero. Nas palavras de Elvira Lobato: "o repórter é a linha de frente do jornalismo".

Para ir além





Fabio Silvestre Cardoso
São Paulo, 20/9/2005

 

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