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Quarta-feira, 12/10/2005
Um rio para lavar a dor
Guilherme Conte

Maria Luísa esbanja talento e versatilidade (Foto: André Gardenberg/Divulgação)

A simples volta de Os Sete Afluentes do Rio Ota aos palcos paulistanos já seria motivo de comemoração. Em meio aos eventos que lembram os 60 anos da bomba atômica sobre Hiroshima, no entanto, a montagem se torna ainda mais oportuna.

Ela é baseada no espetáculo do dramaturgo, diretor e cineasta canadense Robert Lepage, à frente do grupo Ex-Machina, de 1994. Esta versão é dirigida pela ótima Monique Gardenberg e co-dirigida por Michele Matelon. O elenco difere um pouco do que formava o espetáculo em 2003, que contava com Giulia Gam e Beth Goulart.

O rio Ota corta a cidade de Hiroshima e se forma por sete afluentes. No dia 6 de agosto de 1945, as vítimas da bomba corriam a ele para amainar os efeitos das queimaduras. Em algumas horas, estava cheio de corpos.

A partir desta imagem, foram construídas sete histórias, entrelaçadas ora por fortes vínculos, ora por tênues laços. Elas vão desde o campo de concentração de Terezin, em 1943, até a moderna Hiroshima, em 2000.

A peça começa com um soldado americano incumbido de fotografar interiores de casas em Hiroshima, para estudos sobre os efeitos da bomba. Ele, então, apaixona-se por uma hibakusha - uma sobrevivente.

De certa forma, todos os personagens são sobreviventes. Seja da bomba, seja de um campo de concentração, seja da dor ou da própria mediocridade. Em comum, eles fogem da mesma coisa: da solidão. Em Hiroshima ou em Nova York.

Interessante diálogo entre o ocidente e o oriente (Foto: André Gardenberg/Divulgação)

Na união do bom texto, do elenco impecável e de uma direção criativa e inteligente, nasce uma facilidade extrema de transitar entre o riso e o choro. É profundamente emotiva, sem cair no sentimentalismo fácil comum a esse tipo de espetáculo.

Os atores estão afinadíssimos. É um time de respeito, que conta com gente como Caco Ciocler (dos filmes Bicho de Sete Cabeças e Quase Dois Irmãos), Simone Spoladore (do filme Lavoura Arcaica) e Helena Ignez (dos filmes Assalto ao Trem Pagador e O Bandido da Luz Vermelha). Quem rouba a cena, no entanto, é a brilhante Maria Luísa Mendonça, provando que é uma das principais atrizes do teatro brasileiro.

Sua versatilidade enche os olhos, encantando como uma criança que escapa do campo de concentração ou como uma senhora hibakusha no balanço da maturidade. Sem falar nos delicados butôs que desenha com leveza impressionante (ao lado do ótimo Felipe Kannenberg). Saí do teatro apaixonado por ela, em meio a uma platéia que se esvaiu em aplausos.

Boa parte da grandeza do espetáculo se deve à ótima direção de Monique Gardenberg, que também assina Baque, em cartaz no Teatro Vivo até o dia 30. Seu maior mérito está em manter o foco do espetáculo em suas 5 horas de duração (há um intervalo de 25 minutos após 2h30). Não é força de expressão: nem sentimos o tempo passar.

O uso de projeções e recursos audiovisuais (também presente, mas sem tanto acerto, em Baque) enriquece a montagem e cria um interessante diálogo. A trilha sonora é muito boa e dá atualidade à montagem. Destaque também aos belos cenários de Hélio Eichbauer, aos figurinos de Marcelo Pies e ao trabalho corporal de Márcia Rubim e Dani Hu.

Mais que uma reflexão sobre a guerra e o trauma da dor e da violência, Os Sete Afluentes do Rio Ota é um belíssimo mosaico da segunda metade do século XX. Um espetáculo inesquecível.

Para ir além
Os Sete Afluentes do Rio Ota - SESC Pinheiros - R. Pais Leme, 195 - Pinheiros - (11) 3095-9400 - Sábado, 20h; domingo, 18h - R$ 30,00 - Até 06/11.

Aldeotas: Camilo assina poesia de rara sensibilidade (Foto: Divulgação)

O mundo num pedaço de terra

O retorno, depois de um grande afastamento, é difícil. O confronto de nossas lembranças com a realidade é inevitável. Mudanças, ausências, saudade. A infância, resguardada no pedestal da memória, desce à dureza do curso da vida.

É deste embate que nasce Aldeotas, de Gero Camilo. Ele também estrela o espetáculo, ao lado de Marat Descartes. A direção fica a cargo da talentosa Cristiane Paoli Quito.

A memória de Levi (Camilo), desde que era um pequeno garoto em Coti das Fuças, é reconstruída no palco. Do quintal nasciam grandes aventuras com o amigo Elias (Descartes). Num piscar de olhos, o cajueiro virava um disco voador.

O trabalho dos atores e a direção, aparentemente imperceptível, são impressionantes: no palco, um tapete e algumas folhas de papel. Dali nascem banhos de açude, namoros, prostíbulos, tertúlias e brigas ao pé da cozinha.

A peça é uma grande poesia, tecida com sensibilidade e pureza, que leva a um riso fácil. O texto de Camilo revela um olhar atento aos mínimos detalhes e uma memória repleta de belas imagens.

Sua riqueza, no entanto, está em não cair na idealização gratuita. Ao mesmo tempo em que o resgate de sua infância traz uma boa dose de afeto e saudade, fica transparente uma sociedade difícil e repressora, com raízes no machismo e no preconceito. Os contornos da memória se ancoram em rara lucidez.

É um belo mergulho na infância, tempo em que as preocupações resumiam-se a qual seria a brincadeira do dia seguinte. Crescer é muito difícil, lembrar mais ainda. O jovem Levi, em suas pequenas grandes aventuras, nos mostra o quão importante é sonhar.

Para ir além
Aldeotas - Teatro Augusta - R. Augusta, 943 - Cerqueira César - (11) 3151-2464 - Quarta e quinta, 21h - R$ 20,00 - Até 27/10.

Notas

* Ano que vem se completam 100 anos de morte do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen (1828-1906). E as comemorações já começaram: o SESC Anchieta traz a montagem de O Pequeno Eyolf (R. Dr. Vila Nova, 245 / sexta e sábado, 21h; domingo, 19h / R$ 20,00 / Até 06/11), inédita no Brasil. A direção fica por conta do competente Paulo de Moraes, o cérebro por trás da Cia. Armazém de Teatro, de Curitiba (a criação mais recente do grupo, A Caminho de Casa, está em cartaz no SESC Belenzinho, de sexta a domingo, até 13/11). Além dela, diversas palestras e leituras dramáticas estão programadas, como Solness, o Construtor (direção de Mário Bortolotto, 13/10) e O Inimigo do Povo (sob a batuta de Sérgio Ferrara, 27/10). Vale ficar ligado na programação do SESC.

* No Casarão do Belvedere (R. Pedroso, 267, Bela Vista / (11) 3842-5522 / todos os espetáculos custam R$ 10,00) está rolando a mostra da Cia. Os Fofos Encenam, até o fim do mês. É uma boa oportunidade para conhecer o trabalho deste grupo, jovem mas de uma maturidade notável. Além da ótima Assombrações do Recife Velho, que segue em cartaz de quinta a domingo (21h), também são apresentadas Deus sabia de tudo e não fez nada, de Newton Moreno (sextas, 24h), e A mulher do trem, de Maurice Hennequin e George Mitchell (sábados, 15h30). Preste atenção nos textos do pernambucano Moreno (da maravilhosa Agreste), um dos principais autores da nova dramaturgia brasileira.

* Um dos clássicos do dramaturgo Bertolt Brecht, A Alma Boa de Setsuan (1941) recebe boa leitura pela Cia. Teatro do Incêndio, dirigida por Marcelo Marcus Fonseca, no Teatro Arthur Azevedo (Av. Paes de Barros, 955 - Mooca / Sexta e sábado, 21h; domingo, 19h / R$ 10,00 / (11) 6605-8007 / Até 13/11). É interessante notar a atualidade do texto, ainda mais em tempos de mensalão. O bom elenco é o carro-chefe da montagem. Destaque para a bela Camila Turim, que esbanja talento alternando-se na pele da prostituta Shen Te e de seu rico e inescrupuloso primo.

* Os interessados em teatro têm uma boa fonte de consulta: a Enciclopédia de Teatro do Itaú Cultural. Com 650 verbetes divididos entre "Personalidades", "Companhias e Grupos" e "Espetáculos", faz um bom apanhado da produção brasileira desde 1938. A coordenação é da pesquisadora Johana Albuquerque. Fácil, simples, rápido e grátis.

Guilherme Conte
São Paulo, 12/10/2005

 

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