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Segunda-feira, 24/10/2005
Filmes maduros e filmes imaturos
Marcelo Miranda

Conversas informais geralmente fazem surgir bons temas de colunas. Foi de um papo inofensivo que nasceu meu texto mais acessado até agora aqui no Digestivo, A Falta de Paciência com o Cinema. E logo hoje, que eu estava completamente sem assunto, de uma conversa com uma amiga próxima estalou uma discussão que pode ser levantada. Não sei o quanto é significativa, nem muito menos de interesse para os leitores. Mas é algo que eu costumo dizer e defender e que nem sempre sou compreendido como deveria. Então, levanto a bola. Bate (ou devolve) quem quiser.

O papo é sobre filmes maduros e filmes imaturos. O que é um e o que é outro? O pensamento se fixou recentemente quando assisti a O Jardineiro Fiel, em cartaz nos cinemas e primeira produção estrangeira do brasileiro Fernando Meirelles (ele fez o aclamado e debatido Cidade de Deus). Aí está um filme extremamente maduro. Corajoso, ousado, tenso, que toca em feridas e as aperta. E maduro tanto no sentido amplo de sua narrativa, que aborda a indústria de remédios e os africanos como cobaias humanas, até o pano de fundo, que consiste numa história de amor, fidelidade e respeito. Tantos elementos (e mais um monte de outros), todos maravilhosamente conjugados, tornam O Jardineiro Fiel definitivamente um filme maduro.

O Jardineiro Fiel
O Jardineiro Fiel: maturidade na tela

Outro maduro visto há poucas semanas foi Manderlay, no Festival do Rio 2005. Talvez ele passasse como apenas mais um experimentalismo amalucado do dinamarquês Lars Von Trier, não fosse o detalhe de ser continuação de Dogville. Em perspectiva, Manderlay é muito mais maduro que seu antecessor. Lida de forma mais ácida e menos convencida com as questões apresentadas - no caso, a escravidão negra nos EUA. Se antes Von Trier literalmente atirava em tudo e todos, agora ele escolhe um foco e lida com o assunto de maneira bem mais firme e até mais consciente de seus próprios limites. Escancara ao público, por mais manipulativos que sejam seus recursos, idéias de comportamento e submissão muito verdadeiras e francas. Em se colocando os dois filmes lado a lado, Dogville torna-se infantil. E imaturo.

A maturidade no cinema não está necessariamente na temática. No caso de Meirelles e Von Trier, está (mas também na imagem, no desencadeamento das cenas e no uso da linguagem), mas nem sempre precisa ser assim. Quentin Tarantino cria, em Kill Bill - Volume 2, um filme de grande maturidade apenas através da proposta de utilizar referências do mesmo cinema em que ele se expressa. Tarantino mistura num verdadeiro caldeirão pop toda a bagagem que ele carrega desde quando era atendente de locadora. Disso, sai uma poção mágica em película que discute desde (novamente) o amor até a condição humana dos super-heróis. Acima de tudo, o diretor tenta um exercício de linguagem de grande complexidade e sutileza, ao colocar na tela uma história já devidamente esgotada (mulher sai em busca de vingança) com roupagem pós-moderna. A maturidade de Tarantino está em lidar com tudo isso sem jamais deixar de, no fundo, tocar na questão principal - que, no caso do filme, é a relação de duas pessoas que se desentenderam no passado.

Mas nem sempre foi assim. Kill Bill - Volume 1 pode ser exemplo de filme imaturo. Apesar de, desde então, as intenções de Tarantino serem as comentadas no parágrafo anterior, aqui ele ainda não explicita isso. Espertamente, guardou o grande segredo para a segunda metade da saga de sua personagem. Nesta primeira parte, Tarantino se coloca como uma verdadeira criança que se diverte à beça em brincar com o que tem em mãos. No caso, as tais referências, mais presentes que nunca em sua obra: seriados japoneses, filmes suecos, atores, cantores, enquadramentos, objetos. Nada no primeiro Kill Bill está na tela sem propósito. Cada elemento tem a sua motivação, e mesmo que isso não fique claro ao espectador, Tarantino sabe o que significa - e é onde reside a sua "imaturidade": em inserir elementos que, na esmagadora maioria das vezes, só ele mesmo saberá perceber (ou mais algum fanático, mas são exceções). No geral, o diretor se diverte com a confusão provocada na platéia, se deleita como um garoto ao sentir que as pessoas estão procurando as pistas como num jogo de erros.

O que se diz neste texto não é que brincar seja imaturo. A tentativa é de se explicar (ou criar, sei lá) um conceito sobre até onde um filme é "adulto" ou "infantil", qual o limite entre alguma espécie de engajamento (social, ideológico, o que seja) e a quase única e simples tentativa de "jogar" com o espectador. Obviamente, gêneros não criam essas "categorias". Não é porque um filme é engraçado que ele automaticamente seria taxado de imaturo, e vice-versa. Exemplo básico: Woody Allen. Um dos maiores comediantes americanos em atividade é um dos cineastas mais maduros de seu tempo. As tentativas de Allen em fazer humor surgem sempre de situações bastante delicadas que, exatamente por se aproximarem do cotidiano (e das esquisitices naturais da vida), ganham contornos engraçados nas lentes do cineasta. Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, Manhattan, A Rosa Púrpura do Cairo e tantos mais são comédias rasgadas e hilariantes, mas sempre conscientes do valor que cada ação dos personagens tem para o outro. O mesmo se diria de alguns trabalhos de Billy Wilder, em especial Se Meu Apartamento Falasse e Irma La Douce.

Por outro lado, um drama não ganha contornos de maturidade simplesmente por ser drama. Fiquemos aqui no país mesmo: Olga, de Jayme Monjardim, deve ser o filme mais imaturo e infantil dos últimos tempos no Brasil, e nesse caso o conceito surge pejorativamente. Desde a proposta assumida do filme ser um "novelão" de quinta categoria travestido de cinema comercial, passando pela construção rasa de personagens, pelos sentimentos simplórios, pela estética malfeita e limitada, chegando ao melodrama no pior sentido do termo (isso porque falamos da biografia de uma revolucionária comunista). Olga torna-se uma anomalia, tentativa fracassada de ser um filme sério (maduro) que conseguiu, no máximo, fazer rir inadvertidamente (imaturo).

Olga
Olga: risos involuntários e imaturidades

Michael Moore é um cara sem maturidade. Seu Tiros em Columbine e, em especial, Fahrenheit 11 de Setembro, são filmes que tentam a todo custo chamar a atenção através dos recursos mais óbvios e simplistas, apelando até mesmo para a popularidade de seu diretor. Se os temas de Moore são indiscutivelmente oportunos e instigantes (a indústria de armas e o governo Bush), a realização de seus trabalhos beira a um choro birrento de um adulto que quer chamar atenção de quem não conhece.

Uma comparação, para tentar fechar: Entre Quatro Paredes e O Quarto do Filho. Ambos de 2001, ambos com enredo semelhante (famílias destroçadas pela morte de um ente querido). Se no primeiro defende-se ações extremistas para a resolução do conflito - e a forma como o roteiro lida com as conseqüências da perda é a de rapidamente arranjar uma solução que a abafe -, no segundo há muito mais sensibilidade em se compreender a perda, em buscar, por mais que seja quase impossível, compensá-la de outras formas. Em um, solução rápida e imediata; em outro, a busca pela aceitação e a tentativa de superação. Qual parece mais maduro?

Volto a bater na tecla de não saber o quanto essa discussão é frutífera ou não. Em tempos de filmes de verão de apelo infantil, parece cada vez mais difícil encontrar no cinema produtos realmente para adultos, que não sejam engodos. Numa indústria como a de Hollywood, que entope o circuito brasileiro e parece pensar apenas no público jovem que lota as salas, achar um O Jardineiro Fiel é tarefa hercúlea e por vezes ingrata. Quando isso acontece, deve-se ser maduro o suficiente para pegar e não soltar mais.

Esperança

Nem tudo está perdido. Ações pontuais que ironicamente contam com o apoio da grande indústria ainda tentam sobreviver. É o caso do projeto Vá ao Cinema, de Ademir Pascale Cardoso e que anda sendo divulgado via internet. Consiste numa extensa parceria com Fox, Lumière, Alpha Filmes, Playarte, Europa Filmes, Art Films e Circo Vox para distribuir gratuitamente convites a quem se interessar em ver os lançamentos. Criado há nove meses, o projeto visa a inclusão cultural de quem não teria acesso às salas de cinema de outra forma e já atingiu quase mil pessoas - formar platéia no Brasil é trabalho árduo até quando é de graça. Segundo e-mail que anda circulando por aí, Ademir, mantenedor do portal Cranik, quer "incentivar o cinema no Brasil, ajudar as pessoas de baixa renda a entrarem nas salas (...) integrando as mesmas com mais facilidade na sociedade (...)". Ademir está à disposição (e torcendo) para novas parcerias. Pode se encontrado pelo telefone (11) 8513-4859 ou através do e-mail. Boa sorte a ele e a todos os envolvidos.

Marcelo Miranda
Juiz de Fora, 24/10/2005

 

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