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Quinta-feira, 27/10/2005
A entrega de Toni Bentley
Leônidas Pellegrini

Ao comentar sobre seu meticuloso hábito de contar cada uma de suas relações anais (colecionando numa caixa as camisinhas usadas em cada episódio) Toni Bentley, autora do recém-lançado A Entrega: memórias eróticas (Objetiva, 2005, 220 págs.), justifica-se como sendo "anal". Terminada a leitura, entretanto, percebi que a autora está muito além de ser uma simples freudiana, e que, de fato, parece ter desenvolvido uma verdadeira "alma anal", termo que pode ser explicado pela intensa relação espiritual/existencial que Bentley estabelece em seu "sórdidos" relatos.

O livro, que já se encontra em décimo lugar entre os mais vendidos de não-ficção no Brasil, envolve um relato pessoal das experiências eróticas da autora, desde uma breve introdução acerca de seu defloramento, suas primeiras relações sexuais insatisfatórias, seu casamento fracassado (e traumático) e diversos relacionamentos monogâmicos infrutíferos, até sua grande descoberta sexual com o Homem A, com quem vive uma relação por cerca de três anos. E a tal grande descoberta da narradora nada mais é que o intenso prazer que encontra nas relações anais mantidas com seu amante. Mas fica claro, pela intensidade e pela complexidade que se é dada por Bentley à sua relação com o Homem A, que não se trata apenas da descoberta de um grande prazer, mas um desabrochar espiritual. A ex-bailarina, ex-esposa e ex-boa-moça tem uma formação ateísta que a leva a procurar de diversas maneiras por alguma crença divina.

Além disso, carrega traumas de uma criação paterna rígida e carente de amor, o que, segunda a própria narradora, pode ter sido grande o fator que a levou a desenvolver seu caráter tão oblíquo e tão frágil, e a ser uma pessoa com tantas dificuldades de relacionamentos. E essa mulher de vida sexual tão atribulada acaba encontrando a terapia e a "cura" de seus fantasmas na sua "porta de saída": numa relação (jamais monogâmica) de prazer transcendente, masoquismo e obediência temperada, Bentley viaja para dentro e fora de si, harmoniza seus yin-yang, tem seu encontro consigo própria e com Deus; a sua luz interior, a revelação de sua espiritualidade, é acesa pelo seu buraco obscuro!

E podemos pensar, sim, que essa paixão não é novidade tão grande, pois o ânus é mote pra lá de cantado e recantado na literatura erótica e/ou pornográfica: o renascentista Pietro Aretino já cantava repetidamente em seus sonetos o seu grande apreço pelo sexo anal ("E Deus perdoe a quem no cu não foda"), e também Sade, na voz do cínico Dolmacé, disserta longa e apaixonadamente sobre sua devoção pelo ânus. Mas fique claro que Aretino e Sade, além de lidarem com uma tradição pornográfica de estereótipos, passam ao leitor uma visão masculina do assunto. De poucas vozes femininas que já vi falando sobre a "paixão obscura" (e como uma revelação de prazer), lembro talvez apenas de Adélia Prado, em seu poema "Objeto de Amor":

"De tal ordem é e tão precioso/ que vou dizer-lhes
que não posso guardá-lo/ sem a sensação de um roubo:
cu é lindo!/ Fazei o que puderes com esta dádiva.
quanto a mim dou graças/ pelo que agora sei
e, mais que perdôo, eu amo."

Registre-se, então, que recentes estudos de sexologia já se aprofundam bastante nos assuntos das relações anais (e não mais como perversões, desvios ou tabus), esquadrinhando-se e diferenciando-se, inclusive, os orgasmos anais feminino e masculino. Mas a experiência de vida de Bentley parece adiantar esses estudos em anos (ou ânus...).

Outra característica de não-novidade em A entrega é a da autobiografia erótica/pornográfica, já desenvolvida por Casanova em suas memórias, pelo relato anônimo (e duvidoso) do vitoriano Walter em Minha Vida Secreta, por nomes consagrados da literatura norte-americana como Frank Harris, Henry Miller, Erica Jong e Anais Nin, por escritoras brasileiras de 70/80, como Adelaide Carraro, Cassandra Rios e Márcia Denser, e, recentemente (num claro indício da total libertação sexual e pessoal feminina), por nomes como Melissa Panarello, Ana Ferreira e Sabina Anzuategui. Mas Toni Bentley, em sua incursão, mais uma vez parece ir além de todos esses nomes, seja pela ousadia, seja pela intensidade com que relata sua descoberta e sua paixão.

E em meio a tantas descrições de coitos anais (ela conta um total de 291 do início até um fim de seu caso com o Homem A) e reflexões e apologias ao buraquinho, o livro apresenta ainda um caráter de manual informativo. Bentley, com base em vasta experiência de campo, disserta sobre diversos "tipos" sexuais peculiares (como o Farejador de Vagina, apaixonado pela prática do cunilíngua), sobre práticas e preferências sexuais mais "comuns" como o menáge à trois, o swing, o 69, divagações sobre tamanhos de pênis, etc. Também apresenta dados e estatísticas acerca da sodomia: eu mesmo não fazia idéia, por exemplo, de que até 1962 todos os estados norte-americanos tinham leis severas contra a prática sodomita, e que em treze deles ainda vigoram leis desse caráter, tendo havido, só na Carolina do Sul, entre 1945 e 1974, 146 processos e 125 condenações! A autora ainda fala sobre tipos de lingerie e sobre o KY Gel, deixando inclusive dicas de uso e compra: "Conselho para quem dá o cu: use óculos escuros para comprar KY e não se vire na fila do caixa: estão todos olhando para sua bunda, sem acreditar" (pág. 111).

A Entrega, enfim, como todo grande auto-relato erótico, envolve a história de uma paixão, um grande caso, com seu desenrolar, sua decadência e seu fim (mas que deixando uma clara mensagem de renovação do espírito humano e continuidade da vida). Pode ser visto, afinal, como uma bela e intensa história de amor, escrita com estilo e alma. Um livro para ser lido sem preconceitos e/ou julgamentos morais, mas com a mente e o espírito "escancarados".

Para ir além

Site de Toni Bentley.





Leônidas Pellegrini
Londrina, 27/10/2005

 

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