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Segunda-feira, 21/11/2005
A reação do cinemão
Marcelo Miranda

1.
Está cada vez mais interessante e curioso acompanhar como a paranóia que tomou conta da sociedade e do governo norte-americanos vem invadindo o cinema - em especial as superproduções de Hollywood. O jornalista brasileiro mais insistente nessa tecla é o Sérgio Dávila, da Folha, mas ele é tão ou mais paranóico que os próprios americanos. Ainda assim, é inegável que o pós-11 de setembro de 2001 transformou a indústria de entretenimento visual dos EUA numa linha de montagem mais ligada à realidade. Não só isso: tornou essa mesma linha de montagem em tentativas de "responder" a ameaça "invasora" ao estilo do presidente Bush.

Uma série de filmes grandiosos (no sentido do orçamento e ambições de bilheteria) vem sendo lançada tendo no coração de seus roteiros questões ligadas ao tema "terrorismo", sem que para isso sejam abordadas tramas reais, ou mesmo realistas. Importa é inserir no enredo os perigos que os EUA sofrem de quem vem de fora. Mais que isso: em mostrar ao espectador (principalmente à massa jovem que consome esse tipo de filme) como lidar com esses "vilões". Exemplo mais recente: A Lenda do Zorro, de Martin Campbell e em cartaz nos cinemas desde o último dia 28 de outubro. A princípio, um longa de ação e aventura para ser curtido com o barulho das pipocas: o famoso cavaleiro mascarado defende os pobres e oprimidos da tirania dos poderosos. Só que vai além: o filme se passa pouco antes da Guerra de Secessão, na época em que a Califórnia se torna um estado. Zorro está do lado dos californianos e luta bravamente para ajudá-los nos seus ideais políticos. Logo no começo, quando o herói aparece entre mastros que ostentam a bandeira americana, e em seguida arrasa os oponentes com os mais variados chutes e socos, sendo saudado pela população, a impressão é de que transformaram o personagem num verdadeiro salvador da pátria.

A Lenda do Zorro
A Lenda do Zorro: herói salvador da pátria

A coisa não pára por aí. A certa altura, descobrimos que Zorro está enfrentando um francês maluco disposto a destruir a América para limar desde já o poderio do país, a ser adquirido com a anexação da Califórnia. Pense bem: no século XIX, o mascarado Zorro enfrenta terroristas franceses. Se pensarmos que a França se opôs aos contra-ataques de Bush e que, no filme, o herói obviamente impede a nação de ser explodida, não há como não pensar que existe implícita aqui a insinuação de um país disposto a enfrentar os oponentes externos com toda a força e frustrar seus planos sangüinários. O herói de capa preta, no fundo um homem simples e bem treinado, representa a resistência aos anseios suicidas de fora (ironicamente, ele é um "mestiço" de americano e mexicano).

Outro caso extremamente semelhante e também deste ano é Batman Begins. Nova encarnação do Homem-Morcego nas telas, mostra a gênese do personagem, desde o trauma de perder os pais na infância, o ódio, o medo se transformando em raiva, o treinamento e os combates pelas noites de Gotham City. E qual é o grande perigo que Batman enfrenta logo de cara? Um estrangeiro inserido na América com a intenção de limpar Gotham do mapa e reconstrui-la como uma cidade mais pura e menos violenta (!). Novamente temos o "invasor" com planos maquiavélicos e disposto a morrer pela própria causa - contanto que a cidade vá com ele, este seu maior objetivo. E lá está o Cavaleiro das Trevas a atrapalhar a tentativa de limpeza social, lá está o salvador (de novo um homem comum que desenvolveu suas melhores habilidades) dando tudo de si em nome da vida e da justiça.

Só mais um: Guerra dos Mundos, última produção de Steven Spielberg e outro sucesso de 2005. Aqui, a ligação entre invasão e destruição é explícita: marcianos surgem do chão e eliminam quem estiver pelo caminho. A intenção é fertilizar o planeta com sangue humano e repovoá-lo. No meio do caos, temos Tom Cruise, cidadão simples (outra vez) que precisa se dividir entre cuidar dos dois filhos e sobreviver com eles à iminente destruição da Terra. Num dado momento, Spielberg não se esconde: em meio ao ataque, uma garotinha se desespera e pergunta se "são os terroristas" a fazerem aquela baderna. Comentário oportuno, aparentemente antenado, mas que denota significados muito maiores do que a mera preocupação do roteiro em parecer atual. É, sim, clara demonstração de que a realidade mexeu com a cabeça dos executivos e produtores do cinemão. Eles não mais parecem fazer os filmes-pipoca só para diversão: usam esse filão para expurgar os males e medos de sua própria cultura atual, regida pelo temor de que os "de fora" venham para dentro e coloquem abaixo as estruturas físicas de seu território - porque as estruturas psicológicas parecem já ter sido demolidas lá em 2001.

Batman Begins
Batman: o morcego contra o terrorismo

Sempre que comento com conhecidos essas impressões que tento explicar aqui, muitos me dizem ser este tipo de filme apenas para consumo rápido, entretenimento, blockbuster. Aí está o perigo: disfarçados, os filmões vêm aos montes, carregados pelas campanhas de marketing e o interesse quase osmótico do público, que fica por fora da onda e do disse-me-disse se não vai assisti-los. E pelo alcance maciço, tais filmes conseguem espalhar esses ideais de forma muito mais abrangente e bem sucedida - pois atingem não só os próprios EUA, mas boa parte dos cinemas mundiais. Sob o pretexto de serem apenas passageiros, de quererem só provocar duas horas de passatempo inofensivo, carregam para as salas de exibição noções questionáveis e até perigosas do que representa a América no mundo de hoje. Ou melhor, de como ela quer ou deve ser representada: um espaço intransponível, uma terra de leis e ordens em que o coitado que tentar ultrapassar seus limites vai se ver com os "heróis". Que o digam o Afeganistão e o Iraque.

Não sou da turminha anti-EUA que passou a existir por aí e foi catapultada pelas estripulias infantis (mas pop) de Michael Moore. Adoro o cinema americano, acredito que ali estão nomes e artistas de enorme peso. Não é por vir de lá que um filme não tem importância. Tem, sim, e muita. O que tento expor é o quanto essa tensão que abate o país desde 2001 (e tão maravilhosamente retratada na série 24 Horas, certamente o melhor produto audiovisual do pós-atentado) se reflete nas grandes produções. Não dá pra ignorar a tentativa imatura de diretores contratados em querer colocar nos seus filmes de orçamentos astronômicos pensamentos simplistas e reacionários de como lidar com os complexos problemas da geopolítica mundial. Spielberg é o menos alucinado, e sente-se isso no desfecho de Guerra dos Mundos. Mas Campbell e seu Zorro, ou Christopher Nolan e seu Batman, entre tantos mais, são nomes de certo talento que tentam extravasar os anseios de uma nova realidade por meio de roteiros rocambolescos e efeitos especiais inovadores. Que façam o que desejarem. Nós só precisamos ter noção disso e não nos deixar levar pela desculpa de estarmos consumindo um mero produto inofensivo. Ou alguém acha que petardos como Bad Boys 2 chegam no único intuito de servirem como pão e circo?

2.
Não existem mais políticos como Franklin Delano Roosevelt. Quem entende um mínimo de história, e em especial que viva nos EUA, deve lamentar diariamente ter um presidente como George Walker Bush (e olha que ele foi reeleito, o que mostra que os americanos são meio malucos). Um país que já foi governado por três mandatos por alguém como Roosevelt, numa época de incertezas e descrenças, deveria se valorizar mais politicamente. O homem que surgiu como um furacão e definiu os rumos de sua nação, em termos sociais, políticos e econômicos, é belamente biografado em Roosevelt (Nova Fronteira, 206 páginas), de Roy Jenkins.

O livro dá várias abordagens à trajetória dessa pessoa que mudou completamente os EUA e foi fundamental para tornar o país a potência atual. Por um lado, o leitor se depara com os dramas pessoais desse líder, desde a poliomielite que lhe impediu de andar por boa parte da vida, o casamento com a própria prima, Eleanor, e várias problemas de saúde. Por outro lado, temos a ousadia de implantar o New Deal, série de medidas econômicas para tirar a América de um poço até então sem fundo após a Grande Depressão e a crise da superprodução, estourada em 1929; e a entrada de fato dos EUA na Segunda Guerra Mundial, com a decisiva invasão da Normandia (França).

Roosevelt não viveu para assistir à vitória dos Aliados. Morreu em 1945, depois de governar o país desde 1933. Ainda assim, seu legado é incontestável, para o bem e para o mal. Roy Jenkins, nome já tradicional na biografia de grandes líderes (é também dele Churchill), se mostra claramente fascinado pela figura que retrata, mas não se deixa cegar. Aborda de forma crítica o trabalho do presidente e mesmo algumas jogadas equivocadas - mas que não foram suficientes para apagar sua importância. Se os EUA são o que representam na geopolítica atual, muito se deve a Roosevelt. Se isso é bom ou ruim, vai depender principalmente de quem tem o manche. E no momento, o privilégio é de Bush.

Para ir além





Marcelo Miranda
Juiz de Fora, 21/11/2005

 

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