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Segunda-feira, 5/12/2005
Em defesa da normalidade
Fabrício Carpinejar

Só escuto escritor bajulando a loucura. Paranóico, esquizofrênico, neurótico, dupla personalidade são algumas das caracterizações predominantes entre os autores. Ninguém mais quer ser normal. O desvio é status. Houve a banalização do caso clínico, a menosprezar quem realmente sofre desse mal. Ou alguém acredita que o verdadeiro esquizofrênico comentará sua doença como um passatempo? Ele não sentirá orgulho, pois todo dia acorda para enfrentá-la e domá-la. E o processo é difícil e angustiante. É preciso tomar cuidado com a palavra, a ponto de não ser seduzido a falar o que não é indispensável. Claro que o escritor que se diz louco ganha pontos com o público, afinal mistifica sua vocação e literatura. Torna-se um ser de exceção, imprevisível. Mas o preço não é alto? Não é um egoísmo?

Proponho a defesa da normalidade. Um elogio à pacatez. Chega de pensar que a intensidade está em superar os limites. A intensidade é aproveitar os limites. É viver todas as possibilidades de um mesmo ritual. Repetir, repetir, para aperfeiçoar as variações. Contar uma mesma história para reparar e se deliciar com as pequenas mudanças.

Quero mais é ser normal. Brincar no parque, rolar na grama, andar de mãos dadas, dançar até perder o domínio dos pés, tomar sorvete em noites tórridas, cuidar dos filhos, namorar na frente da televisão, buscar um cobertor para aquecer a mulher quando ela dorme na sala, assobiar para espantar o tédio, comentar a violência e a política na parada de ônibus, bagunçar as gavetas no trabalho, usar tênis folgado para as caminhadas. Quero mais as alegrias perecíveis. Um café da manhã com direito a farelos na toalha e goiabada no chão. Quero mais naufragar na rotina. Fazer tudo exatamente igual porque gosto, porque escolhi essa vida e não foi imposta, porque quando amo nada se esgota, nada tem fundo.

Muitos proclamam a loucura porque não estão nela. Cômodo assistir as brasas do inferno de longe. É também uma forma de se eximir da responsabilidade. Fácil declarar que se é louco para não arcar com as conseqüências, tanto aqui como no tribunal.

Ser louco não é coisa boa. Não traz consolo, prazer ou conhecimento. Ser louco é uma profissão estressante, sem amigos. O louco desconfia de sua própria imaginação. Ele pena para manter sua saúde. Devemos valorizar a saúde para não torturar a linguagem e os leitores.

Fazer Silêncio, de Mariana Ianelli

Mariana Ianelli produz silêncio no leitor em seu novo livro. Um silêncio que é cumplicidade e empatia, a identificação de uma memória em comum.

A escritora refaz o passado com o refinamento de uma profecia, cria uma "arqueologia sagrada" de seus hábitos, desaloja verdades das aparências. Em sua poética singular e febril, cuidadosa e alentada, não há desperdício. Descobre o "rumor do oceano/ no fundo de uma vasilha".

Não existe propriamente o passado, o presente e o futuro, mas aparições, fulgurâncias de uma compreensão simultânea dos tempos. "Não há tempo que me fortaleça/ Sem antes ter me derrubado." Seu olhar é de cima, como do alto de uma árvore, dos telhados, das costas de um anjo. Ela ensina a arte de perdoar, entende as imperfeições que pesam, problematizam e enriquecem a vida. "De todas as paixões do mundo/ Resta-nos o dom de saber perdê-las." Não condena o sofrimento com castigos, culpas e maldições. O sofrimento é sábio e transmuda-se na alegria do autoconhecimento. Não pune; abençoa com a partilha. Para cada aflição, indica uma receita curativa. Ao desespero, sugere "o consolo num copo de cidra".

São poemas para a moldura da voz. Mariana tem uma vocação classicista para lapidar a dúvida em diamante. O adjetivo é bem colocado, os paradoxos são necessários e os versos se perfazem em paralelismos bíblicos. Persegue a justiça e o equilíbrio da forma. Assim como Sophia de Mello Andresen e Maria Teresa Horta, grandes autoras de Portugal, condensa o raro em instantes de deslumbramento, descarna o mínimo com acurada intensidade, ultrapassa a vagueza pelo simbólico e adere ao território mágico das evidências.

Se no outro lado "a eternidade é leve", aqui, neste livro, a escrita ajuda a passagem da brasa ao cristal, do animal ao espírito, do prosaico ao sacro. Dificilmente a poeta fala por si, na primeira pessoa. Recusa a catarse existencialista ou os achaques domésticos, fala com os outros (nunca pelos outros), em conjugação coletiva. "Gozamos um amor tranqüilo, sem heroísmo." Sua mitopoética tem um andar místico e concentrado, a retirar visões sobrenaturais de banais conjunções dos fatos. "Vês aquela menina?/ Alheio à sorte, não podes vê-la:/ Falta-te o conhecimento do oculto:/ Essa criança será tua mulher daqui a vinte anos." Supera a indigência da força física a subir como perfumada fumaça dos círios e da flor oracular do fogo. Não são apenas poemas, são promessas de uma mulher que entendeu a solidão para conviver, que sonhou para contar, que viveu para não morrer a esmo.

Nota do Editor
Fabrício Carpinejar é poeta, autor de sete livros: entre eles, Como no céu/Livro de visitas (2005), Cinco Marias (2004) e Caixa de Sapatos (2003). Estes textos foram originalmente publicados em seu blog e reproduzidos aqui com sua autorização.

Fabrício Carpinejar
São Leopoldo, 5/12/2005

 

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