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Quarta-feira, 22/8/2001
Primeiro texto definitivo*
Paulo Polzonoff Jr

Yara Mitsuishi

Confesso que não gosto muito do Antônio Abujamra. Os motivos não convêm agora. Em seu programa na TV Cultura, no entanto, o dramaturgo e ator disse algo que desde então vem me fascinando. Nem sei se autoria da expressão é do próprio, mas, vá lá. O eterno Ravengar disse a um entrevistado, acho que o Ratinho: "Diga qualquer coisa. Enforque-se nas cordas da liberdade". Gosto desta coisa de enforcar-se nas cordas da liberdade e desde então tenho lido entrevistas com esse olhar. É incrível como o entrevistado cai mesmo na armadilha de ser ele mesmo.

Eu estava com a idéia, já há umas duas semanas, de escrever um texto definitivo sobre Paulo Coelho. Era a minha declaração de cansaço. Vasculhando aqui meu computador percebi que tenho ao menos cinco textos sobre o mago. Ele não vale tanto assim. Como os lançamentos do ex-parceiro de Raul Seixas se avolumam, contudo, é certo que eu teria de escrever mais e mais sobre Paulo Coelho. Com a candidatura dele à Academia Brasileira de Letras, então, seria impossível me abster de tecer comentários sobre o autor de Brida. E lá iria eu com minha canetinha escrever que Paulo Coelho é, sim, pernicioso, por isso e por aquilo. Que os livros dele são, sim, muito ruins e que nada tem de filosóficos, como o tal insiste em proclamar. E que isso e que aquilo.

Hoje, abrindo a revista Veja (como jornalista, tenho de ler os principais veículos de comunicação. Desde já peço desculpas), dou de cara com uma entrevista de Paulo Coelho, na qual ele se enforca nas cordas da liberdade. Claro que seria ingenuidade minha achar que não há certa maledicência no jeito como a entrevista é conduzida. A Veja, Bíblia da classe-média, gosta de posar de inteligente às vezes, e Paulo Coelho é uma das vítimas preferidas da revista. Serviu-me como faísca, contudo e pois.

E sempre que eu começo a escrever sobre Paulo Coelho tenho que dizer que li, sim, um livro do autor. E não adianta a mocinha espernear, gritando "Como só um livro?!". É que eu ainda tenho estômago literário, cherrie. E não pude - até que tentei - transpor as páginas de outros livros do mago tupiniquim.

Pois eu li O Diário de um Mago. Todas as vezes que digo isso alguém se atravessa e me diz que este não é o melhor livro dele. Eu tenho de ler O Alquimista, dizem. Não, muito obrigado. O Diário já me deu subsídios suficientes para não chegar perto de qualquer pessoa que professe Nova Era até a minha décima encarnação a partir desta. Não se trata de má-vontade. Até porque eu li o livro quando tinha uns 14 anos - idade em que se é facilmente influenciável. Este tal O Diário mostrou o quanto um escritor de massa como Paulo Coelho, ao se meter a dar conselhos a um adolescente ou a um adulto com cérebro de adolescente, pode, sim, ser pernicioso. É nestas horas que, em todos os textos, eu conto a história de um amigo meu, que também tinha lido O Diário de um Mago.

Estávamos num shopping, os dois imberbes, e ele resolveu fazer um daqueles "exercícios" que o livro traz ao final de cada capítulo. Disse já ter feito isso antes. Dei de ombros. Ele derramou, então, um pouco de coca-cola na mesa do shopping, fechou os olhos e começou a fazer movimentos circulares no líquido. Depois olhou para a coca espalhada e me disse que estava vendo isso e aquilo.

A história é simples, mas dá a dimensão exata da periculosidade deste homem que vende milhões de exemplares daqui até a Oceania. Ao induzir certos poderes místicos nas pessoas, acaba criando monstrinhos esotéricos como este meu amigo, hoje médico destes que acreditam em duendes. Que se há de fazer?

Chamou-me muito a atenção nesta entrevista da Veja uma expressão usada por Paulo Coelho para justificar as críticas que recebe aqui no Brasil. Disse ele que padecemos de um "fascismo cultural". Não vou dizer que fiquei imune à expressão. Estaria mentindo. Perscrutando minha (curta) vida como crítico cultural (o nome é pomposo para um salário de fome), indaguei violentamente se o mago não tinha razão.

Ele emprega o termo fascismo cultural como uma forma de dominação de certa cultura conservadora, que não consegue ver sua escrita como forma de arte, e que o agride por isso. Provavelmente ignora a origem do termo fascismo, que vem de fascio, nome dado ao martelo que era o símbolo do Império Romano. Mussolini, o Duce, tinha adoração pelo Império Romano e queria que a Itália voltasse a ser o centro do mundo, por isso adotou o termo. De certo modo, isto também era uma provocação, já que o martelo, aliado à foice, era o símbolo do Comunismo. De qualquer modo, Paulo Coelho quer nos dizer que criticamos seus livros pela força, pela intolerância e pelo conservadorismo. Destas razões, concordo apenas com a última. Paulo Coelho parece não entender que a arte é algo extremamente ligado à conservação dos valores. É ela que nos afasta da morte, por exemplo. E nenhum desejo é tão antigo quanto o da imortalidade. Todas as "escalas de valores" culturais se baseiam em comparações com obras passadas. Desde modo é que podemos avaliar a grandeza de um Picasso, por exemplo. E a pequenez, em comparação a este, de um Miró. Ou a grandeza de um Guimarães Rosa. E a pequenez, em relação a este, de uma Patrícia Melo. Ou a grandeza de um Bach. E a pequenez, em relação a este, de um Stockhausen. E por aí em diante.

Força e intolerância, porém, não existem neste caso. A não ser no Afeganistão, não tenho conhecimento de lugares onde ler Paulo Coelho seja motivo para pena de morte. Intolerância? Até hoje jamais ordenei que alguém não lesse qualquer autor, inclusive Paulo Coelho. Alias, leitor, se você quiser, leia agora mesmo O Diário de um Mago. Quanto a mim, sinta-se plenamente à vontade. O que faço, mui modestamente, é apenas tecer comentários que pretendem fazer o leitor reavaliar seus referenciais culturais. Que pretendem fazer com que o leitor perceba a grandeza ou pequenez de um escritor em relação à pretensão literária dele. E nisto não há rigorosamente nada que justifique o termo fascista, empregado, como se viu, erroneamente pelo mago.

Eu venho repetindo isso ad nauseum (aliás, já tenho um bom tema para meu próximo "texto definitivo"): a verdade existe juntamente com a mentira. A luz existe juntamente com as trevas. O bem existe juntamente com o mal. Faz parte de nossa herança católica crer no contrário: que a verdade só existe como contraposição à mentira; que a luz só existe em contraposição às trevas; que o bem só existe em contraposição ao mal. É esse pensamento dualista que cria esta nossa incapacidade para entender que a minha verdade não existe para destruir a sua verdade, mas simplesmente para continuar a ser a minha verdade, por ora compartilhada com você. Se é que me faço entendido.

Em suma: Paulo Coelho acha que estão (estamos?) todos contra ele e que isso faz parte de uma conspiração intelectual. Prova disso é que, na mesma entrevista, diz manter em um cofre à prova de fogo todas as críticas contra seus livros.

Ainda na corda da liberdade, o escritor afirma que Ulisses, obra-prima de James Joyce, é ilegível. Que o bom escritor é somente aquele que consegue se fazer inteligível para a maioria das pessoas. É um erro bastante comum e tolerável numa pessoa que, ainda como parceiro de Raul, escrevia coisas como Viva-viva-viva-a-sociedade-alternativa (perceba a riqueza da rima). É, no entanto, uma declaração infeliz para alguém que quer, através da Academia Brasileira de Letras, reconhecimento intelectual. Ulisses, de Joyce, assim como Grande Sertão: Veredas, seu similar brasileiro, não são livros intransponíveis. Há que se ter, somente, uma capacidade de abstração e certa bagagem literária para admirá-los em sua riqueza. Não se compra Ulisses numa livraria de aeroporto para se ler na ponte-aérea. É um livro que exige um nível maior de atenção. Isto não é demérito para o autor. Tampouco significa, como Paulo Coelho afirma, que os que não conseguem ler Ulisses sejam considerados burros. Eu mesmo só li até a página 200 de Ulisses e me senti satisfeito. É provável que ainda este ano retorne ao livro e vá além. Por outro lado, a incapacidade, digamos assim, de Paulo Coelho escrever como Joyce tampouco o faz melhor que o escritor irlandês. Só reafirma sua opção pela simplicidade ou superficialidade, como querem muitos, entre eles, eu.

O grande público, há que se entender de uma vez por todas, não é justificativa para nada. Absolutamente nada. No Brasil, por algum mistério que ainda não consegui resolver, ele é sempre chamado quando se precisa de atestado de qualidade. Carla Perez diz que é boa porque é amada por milhões; Caetano Veloso idem; Gugu idem; Paulo Coelho idem. Trata-se de um erro grosseiro, porque qualquer pessoa com um mínimo de instrução sabe que a grande massa erra em quantidades proporcionais a seu tamanho. Forçando um pouco a barra (perdão, mas não me vem à cabeça comparação menos forte), é como legitimar a força do Reich tendo em vista seu apoio popular. Além disso, o gosto popular é, muitas vezes, o sintoma de uma doença entranhada no país. Paulo Coelho, por exemplo, muitas vezes reflete o gosto do brasileiro médio por certo "verniz cultural". Há certa espécie de brasileiro que lê livros não porque goste, mas porque isso lhe dá status de uma pessoa culta. O mago preenche, muitas vezes, esta lacuna. Ainda mais se levarmos em conta que seus livros são baratos e acessíveis até à classe C ou D.

O parágrafo acima não quer dizer, em absoluto, que um público grande signifique também uma literatura de péssima qualidade. Para exemplificar, uso dois nomes: Stephen King e J.M. Simmel. O primeiro é autor de livros policiais e de terror. Para se ter uma idéia da grandeza de King, seus livros saem, nos Estados Unidos, com uma tiragem média de 1 milhão de exemplares. Trata-se de uma literatura superficial (como a de Coelho), mas extremamente despretensiosa. Eis sua qualidade. Stephen King jamais se candidataria à Academia Americana de Letras; tampouco quer, como o nosso mago, semear "filosofia" nas pessoas. Ele escreve para quem quer devorar 500 páginas sob um guarda-sol na praia. E basta. J.M. Simmel, por sua vez, é autor de uma literatura de entretenimento que se pretende a um pouco mais séria. Ele escreve enredos cheios de ação, como um bom escritor de entretenimento, mas aqui e ali coloca pitadas de pensamentos políticos, reflexões existenciais, aquela coisa toda. Vendeu mais de 50 milhões de exemplares. Não ganhou nem vai ganhar o Nobel. Não recebeu comendas francesas. É tão-somente um autor que, entre um tiro e outro, entre uma protagonista ninfomaníaca e um vilão homossexual, gosta de dizer o que pensa do mundo. Novamente: sem pretensões maiores.

Quando disse que Paulo Coelho era um autor perigoso (e é só por isso, quero crer, que estou gastando tanto tempo escrevendo sobre o tal), referia-me justamente a esta pretensão. Resignasse-se ele com o fato de ser um escritor das multidões (mais ou menos como Odair José faz com sua música), e não estaríamos lendo este texto. O mago, contudo, quer mais e mais.

Exemplo disso são as influências apontadas por Paulo Coelho em sua, como direi, obra. William Blake, "por seu caráter visionário", Jorge Luis Borges, "por sua capacidade de misturar realidade com delírio", e Henry Miller, "pela espontaneidade narrativa". Aí é pegar muito pesado. Se não, vejamos: o poeta inglês William Blake não tinha, em seus propósitos, incutir nas pessoas nenhum tipo de doutrinação, vá lá, filosófica. Seus poemas são ricos em imagens e sugestões, mas tampouco trazem assim uma visão d'além século. Mesmo que trouxesse, mesmo que Blake fosse realmente visionário, Paulo Coelho não se enquadraria nesta categoria. Ora, existe algo mais retrógrado do que acreditar em bruxas, duendes, demônios, visões de espectros, coisa e tal? Paulo Coelho é, por assim dizer, um visionário às avessas: enxerga longe, lá pelos idos da Idade Média. Quanto a Jorge Luís Borges, sua apropriação do escritor argentino é mais do que indébita. Não sou nenhum fã de Borges, pelo contrário, acho-o um escritor supervalorizado, mas Borges era outro que não suportava uma visão onírica da vida. Seus contos trazem sempre outros universos, mas sempre com um elo muito forte com a realidade. Não há inconsciente em Borges; o que há é uma valorização do consciente. Por fim, Henry Miller. Li a trilogia Sexus, Plexus e Nexus e vi muitos orgasmos. A "espontaneidade narrativa" a que se refere Paulo Coelho só existe porque Miller era um escritor de alcova, alheio a raciocínios mais elaborados. Era um escritor impulsivo. Seu mérito está justamente em aliar esta impulsividade com a capacidade reflexiva. O que Miller faz é mais ou menos como formular um axioma em meio a um orgasmo. Alguém aí vê relação com Paulo Coelho? Nem eu.

O único escritor que tem algum tipo de parentesco com Paulo Coelho é justamente aquele para o qual o escritor e mago desdenha na referida entrevista. Herman Hesse, Nobel de Literatura, era chegado num esoterismo, numa proto-Nova Era, numa filosofia não muito elaborada. Escreveu um grande livro, O Lobo da Estepe (grande livro para quem o lê com uns 15 anos), e outros tantos menores. Seu livro mais famoso é Sidarta, com fortes influências hindus e budistas. Paulo Coelho, contudo, diz que Hesse, na ingenuidade de seu esoterismo remoto, não sabia acabar seus livros. Isto porque, em Sidarta, o escritor alemão deixa uma frase no ar: "Temos que olhar o rio". Caro leitor, são dezenas as obras que trazem o "rio" como metáfora da vida. É um lugar-comum bastante desgastado, que o próprio Paulo Coelho usou naquele seu título asqueroso, Nas Margens do Rio Pietra Eu Sentei e Chorei.

Se você me leu até aqui e é fã de Paulo Coelho deve estar se perguntando: "E o reconhecimento internacional dele?". Sobre isso, pouco tenho a dizer. O mercado editorial é regido por políticas nada superiores às que se praticamente em outros segmentos. Um prêmio aqui, outro ali pode impulsionar em muitos milhões a venda de determinado autor e, por conseguinte, de determinada editora. Há quem ainda me diga que Paulo Coelho é bom porque é muito lido na França. Como se a terra de Napoleão fosse o último bastião da alta cultura mundial. Não é; a classe-média francesa lê também Danielle Steel, Stephen King, Sidney Sheldon e... Paulo Coelho.

Não sei se Paulo Coelho vai ganhar o Nobel. Não sei se vai ser eleito um dia para a Academia Brasileira de Letras. É provável que sim. A única coisa de que tenho certeza é que, em se tratando de literatura, fraudes não vigoram. Neste século que passou tivemos bons exemplos disso, como a nobelizada Pearl S. Buck, os poetas concretos, restritos hoje aos meios acadêmicos, e até Herman Hesse, considerado literatura juvenil. Hoje, Paulo Coelho é deus; amanhã, será mais um nome numa lombada de livro numa estante qualquer.

E nunca mais escrevo uma linha sobre isso.

* Este texto é o primeiro de uma série que pretendo escrever, sobre assuntos os quais não quero comentar jamais, porque considero-os saturados. Todos os anos, por exemplo, escrevo um texto sobre o Oscar, coisa que não quero mais ter de fazer. Também é com bastante regularidade que escrevo textos sobre Paulo Coelho, tema deste "Primeiro texto definitivo". Livrar-me destes temas regulares é também renovar-me e criar possibilidade de novas investigações intelectuais. O que é uma desculpa bastante pomposa para dizer, em bom português, que encheu o saco falar de certos coisas sempre e sempre.

Paulo Polzonoff Jr
Rio de Janeiro, 22/8/2001

 

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