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Quinta-feira, 12/1/2006
Breve reflexão cultural sobre gaúchos e lagostas
Adriana Baggio

Não importa em qual cidade do Brasil onde você mora: ao andar com seu carro pelas ruas, provavelmente já viu em algum automóvel à sua frente um adesivo orgulhosamente colado na lataria. É um retângulo com três faixas diagonais - amarela, vermelha e verde - e um brasão no meio. Esta é a bandeira do Rio Grande do Sul. Os gaúchos estão por todo o país e gostam bastante de ser identificados como tais.

Este orgulho é característico de uma região com uma cultura própria tão forte que talvez até se sobreponha à nacional. Eles são primeiro gaúchos, depois brasileiros. Tanto que, em alguns casos, o adesivo pode ser um mapa do estado com os dizeres "O Rio Grande do Sul é o meu país". Um desejo de que o estado da federação volte a ser uma república independente, como já aconteceu um dia.

Apesar do orgulho regional, muitos gaúchos deixaram sua terra para colonizar e fazer fortuna em outros lugares do país. Eles são em grande número no Norte, no Centro Oeste e no oeste do Paraná. Em João Pessoa, onde morei, conheci alguns deles. Uma senhora de meia idade, há mais de 20 anos vivendo na capital paraibana, parecia ter chegado no dia anterior de Porto Alegre, tal a resistência do seu sotaque marcante. Uma outra mulher, mais jovem, não teve nenhum receio de ser (in ou mal)compreendida ao pedir um "cacetinho com chimia" na padaria. Imagina a cara do padeiro nordestino ouvindo um pedido destes vindo da boca de uma galega moça e bonita (a propósito, ela só queria um pãozinho francês com doce).

A cultura do Rio Grande do Sul é tão forte que acaba sendo generalizada como a cultura da região Sul em geral. Assim como para nós, da parte de baixo do país, o sotaque nordestino é igual ao dos baianos das novelas da Globo, para eles os paranaenses e catarinenses falam como os gaúchos de A casa das sete mulheres. A estereotipização dos personagens "étnicos" na Globo tem grande responsabilidade nisso, mas a representatividade da cultura gaúcha também. Nós, paranaenses, não andamos com a bandeirinha do estado colada no carro. Aliás, para muitos brasileiros, o Paraná só é lembrado quando se fala em trigo e soja. Nem Curitiba é facilmente associada ao estado. Por isso, ao ouvirem meu "leite quente" tipicamente curitibano e paranaense, os nordestinos imediatamente me chamavam de gaúcha. Ô, sina!

A força da cultura e o espírito aventureiro destas pessoas que deixam suas cidades no Rio Grande do Sul para viver em outras partes do país resulta nesta necessidade de identificação mais explícita. Não é uma atitude só deles, mas acho que é mais forte entre os gaúchos, que se agrupam em CTGs (Centros de Tradições Gaúchas), colocam suas bandeirinhas nos carros e mantêm o sotaque intacto. O exílio faz com que os gaúchos sejam mais gaúchos fora do seu estado do que quando estão lá. E quem diz isso não sou eu: a constatação é uma amiga de Erechim, "radicada" em Curitiba. Ela ouve seu CD Acústico MTV - Bandas Gaúchas e, mesmo sem gostar muito de sair de casa, foi no show do Ultramen quando eles estiveram por aqui.

O mesmo espírito gregário que acompanha os gaúchos quando estão em outras cidades tem seu equivalente cultural. O CD que eu citei acima é um exemplo. Quantas coletâneas de artistas agrupados por estado você conhece? Ou se conhece, quantas fazem tanto sucesso? Também existem produtos literários reunindo gaúchos que apresentam ou divulgam sua obra para o restante do país. Tanto na música quanto na literatura, o agrupamento facilita o acesso a outros mercados, mas não acredito que o único motivo seja este. Uma reunião de bandas, escritores ou outros tipos de artistas gaúchos também se justifica pela forte cultura que os une.

Um exemplo deste fenômeno é o simpático livro Contos de bolso (2005, 144 págs.). Foi publicado pela editora Casa Verde, de Porto Alegre, criada para viabilizar a publicação da produção literária de alguns dos escritores que fazem parte da antologia. Iniciativas como esta acontecem aos montes, mas neste caso você não precisa ter medo do resultado final. Os contos selecionados são enxutos na quantidade de palavras e frases, mas são repletos de talento e significado.

Se você tem os dois pés atrás com essas coletâneas publicadas por editoras e escritores "independentes", talvez seja a oportunidade de derrubar o preconceito. Se lhe serve de incentivo, ao lado de nomes desconhecidos estão autores que você já leu ou já ouviu seu amigo blogueiro comentar: Luis Fernando Veríssimo, Daniel Pelizzari, Cíntia Moscovich, Cardoso, Marcelino Freire (com o prefácio), e por aí vai. Quer mais uma (boa) referência? Entre os 43 autores está Marcelo Spalding, recém chegado ao Digestivo Cultural. Ele colabora com três contos, dos quais o meu preferido é "Culpados" (grande o suficiente para não ser reproduzido aqui), seguido de perto por "Vítima": Helena é virgem desde que o pai sumiu de casa.

A antítese "enxutos" e "repletos" que eu usei ali em cima é a essência dos textos da autora que mais me impressionou nesta antologia. Não por ela ter o mesmo sobrenome que eu, mas talvez por escrever contos que parecem slogans. Na boa publicidade, um slogan é uma peça importantíssima e dificílima de fazer. Precisa ter um mínimo de palavras passando um máximo de informação de uma maneira deslumbrante. Nos contos de Ana Baggio, poucas palavras escolhidas a dedo são lidas em segundos, mas podem nos fazer pensar por horas e deixam marcas perenes. Como em "Ventre":

- Menino ou menina?
- Mioma.


Ou em "Separação": Nas bodas de porcelana, quebraram os pratos.

Atitudes como as do pessoal da Casa Verde e outras manifestações em que os gaúchos se unem para reforçar a identidade do seu produto artístico - e para ajudar na venda dele - sempre acabam gerando discussões entre nós, paranaenses, sobre o porquê de o mesmo não acontecer com a gente. Talentos na nossa terra não faltam. De onde saíram Dalton Trevisan, Paulo Leminski e Cristóvão Tezza ainda existem muitos outros.

Um dos motivos é o reflexo, presente até hoje, do hermetismo dos colonos europeus que se estabeleceram em grande parte do estado, principalmente em Curitiba, no fim do século XIX. Um aspecto tão importante e complexo que merece ser abordado exclusivamente em outra ocasião. O segundo motivo é menos sério e mais mesquinho, e pode ser ilustrado por uma anedota: quando as lagostas estão na panela de água quente e uma delas tenta fugir, as outras não deixam. Dizem que acontece o mesmo em Curitiba: quando algum artista começa a ter sucesso fora do circuito local, os outros sempre dão um jeitinho de fazer ele continuar por aqui.

Será que é isso mesmo? Se você tem uma visão da produção cultural paranaense e curitibana ou se é um de nós, dê sua opinião. E para finalizar, aqui vai meu manifesto: liberdade às lagostas!

Para ir além





Adriana Baggio
Curitiba, 12/1/2006

 

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