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Terça-feira, 17/1/2006
O feitiço das letras
Luis Eduardo Matta

Como romancista e leitor contumaz de romances, nunca consegui divisar uma fisionomia única que definisse o romance de maneira categórica e inquestionável. Pela sua compleição generosa, que abarca, numa quantidade numerosa de páginas, um rosário imprevisível de situações, o romance permite ao autor dar asas à imaginação e construir tramas livremente, sem se prender em demasia a regras e sem asfixiar a imaginação ou o estilo em nome da concisão e da objetividade a qualquer custo. Essa característica insubordinada do romance, conjugada a autores de criatividade audaz e sólida bagagem cultural, permitiu, ao logo da História, uma constante renovação do gênero, legando a nós uma maravilhosa multiplicidade de textos que só faz enriquecer a Literatura, oxigenando-a e tornando-a dinâmica e deliciosamente diversificada.

É com base nisto que eu contesto aqueles que afirmam que o excelente e comovente Senhoras do Santíssimo Feminino (Rosa dos Tempos; 268 páginas; 2005) é o primeiro romance da escritora Márcia Frazão, que, desde a sua estréia em 1992, com A Cozinha da Bruxa, o seu primeiro livro de "receitas mágicas", já publicou cerca de uma quinzena de títulos. São justamente essas receitas o pomo da discórdia, já que elas compõem a maioria dos seus livros, levando o leitor desavisado a supor que se tratam de livros de culinária, com um toque de bruxaria, que lhes daria um charme todo especial. É um equívoco. Senhoras do Santíssimo Feminino talvez seja, isso sim, o primeiro trabalho de Márcia Frazão escrito dentro de uma estrutura romanesca mais tradicional e reconhecível, mas mesmo os livros anteriores em que as receitas ocupam a maior parte das páginas, são romances e dos bons. Uma leitura feita sem preconceitos e com o coração aberto irá corroborar essa tese e o leitor amigo haverá de concordar comigo.

Márcia Frazão, como muita gente sabe, além de escritora, é uma bruxa. Uma "bruxa boa", mas uma bruxa. Ao conhecê-la pessoalmente, alguns anos atrás, descobri que as bruxas existem, contrariando tudo aquilo que me foi ensinado na infância quando, confrontado com o universo encantatório das fábulas e contos de fadas, minha imaginação ia às alturas. Imergir na Literatura de Márcia foi, de certo modo, como regressar um pouco à vertente mais lúdica da vida, vertente esta que o avançar dos anos vai se encarregando de minar, substituindo-a pelo racionalismo, pelo pragmatismo e pelo realismo pétreo, qualidades que o mundo adulto exige de nós e que muita gente abraça cegamente, ignorando que a renúncia do saudável e mágico mundo infantil da ilusão, entristece e empobrece os nossos dias, tornando-os nublados, funestos, sem cor, sem brilho, sem alegria. Cultivar um lado juvenil ou até mesmo infantil ao longo de todo o nosso itinerário pela Terra não é sinal de retardamento, como prega o senso comum, mas de ode à alegria e ao nosso potencial criativo. Afinal, alguém já disse (creio que foi Nélida Piñon) que somos seres da ilusão. Na Literatura de Márcia Frazão encontramos isso e muito mais. Encontramos a essência mais pura da alma feminina, encontramos um olhar sensível sobre a condição humana, encontramos a transcendência através das palavras e encontramos, sobretudo, o resgate de uma rica memória familiar, que serve como indispensável matéria-prima para a escritora envolver os seus livros com uma atmosfera enternecedora e intensa de encantamento e poesia.

Mas, falemos um pouco de Senhoras do Santíssimo Feminino, livro em que todas as qualidades listadas acima estão fortemente presentes. Trata-se de um trabalho bastante original. Nele, Márcia Frazão narra, inspirada numa de suas avós, a saga de Virgínia, uma portuguesa devota das santas católicas que se instala no Morro de São Carlos, no Rio de Janeiro dos anos 30. O fio condutor da narrativa do romance é a relação próxima de Virgínia com cada uma das santas, algumas das quais pouco conhecidas, cujas histórias de martírios e provações servem como metáforas para a própria situação da mulher através dos tempos, submetida a toda sorte de abusos, discriminações e violências. No livro, as santas adquirem feições humanas e tornam-se muito próximas do dia-a-dia de Virgínia, como se fossem suas amigas e companheiras em todos os momentos, sem a cerimônia e a deferência caras aos ritos religiosos. Como afirma o escritor Walcyr Carrasco na orelha, "o livro traz a relação com o sagrado para o cotidiano. (...) É uma nova visão, moderna e calorosa, da fé". Posto que a religião católica é descendente da mitologia grega, não seria exagerado afirmar que Márcia Frazão dá às santas um caráter humano, muito próximo ao dos deuses da antiga Grécia, reproduzindo, dessa maneira, a relação que os mais religiosos mantêm com os seus santos de devoção, ao se ajoelharem diante das imagens para orar e conversar, como se os santos estivessem ali, sentados à sua frente, ouvindo-os com atenção e compreensão.

Uma característica marcante não somente de Senhoras do Santíssimo Feminino, mas de toda a Literatura de Márcia Frazão, é o diálogo que a escritora estabelece com a própria memória e a trajetória dos seus antepassados, notadamente, com as suas duas avós, Virgínia e Vitalina - esta, personagem de outros de seus livros, como O Caldeirão da Prosperidade (Planeta; 158 páginas; 2005). Trata-se de uma ficção de profundas raízes autobiográficas mas que, apesar disto, está longe de cair na armadilha do umbiguismo, uma vez que Márcia apenas apropria-se da realidade para, a seguir, reconstruí-la poeticamente numa prosa de ilimitado alcance criativo. A realidade serve-lhe de inspiração, mas, ao ser revivida na ficção, ela é recriada sem, contudo, ser violentada na sua essência. É como se houvesse uma tênue e quase imperceptível linha separando o real da fantasia e Márcia se equilibrasse perfeitamente sobre ela, aglutinando o melhor dos dois lados e sabendo dosá-los com hábil precisão, como se misturasse ingredientes mágicos num caldeirão. Uma pitada a mais de determinada erva e o feitiço já não surtiria o mesmo efeito.

Podemos esperar de Márcia Frazão muitas novas incursões pela Literatura e esperamos, com sinceridade, que ela nos brinde com novos romances como Senhoras do Santíssimo Feminino e não se esqueça, naturalmente, dos seus livros com viés, digamos, mais "culinário", que tantos leitores e admiradores conquistaram país afora. Mulheres ou homens, religiosos ou ateus, peço que não se acanhem em mergulhar na literatura da nossa querida bruxa, que acolhe a todos calorosamente nas suas páginas encantadas e nos conduz por uma viagem inesquecível pelos labirintos de uma memória mágica e arrebatadora materializada na forma da melhor Literatura. Eis o verdadeiro feitiço das letras.

Para ir além





Luis Eduardo Matta
Rio de Janeiro, 17/1/2006

 

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