busca | avançada
105 mil/dia
2,0 milhão/mês
Quarta-feira, 22/2/2006
Sou da capital, sou sem-educação
Ana Elisa Ribeiro

Bem que eu gostaria de fazer desta coluna um pequeno documentário. Alguma coisa assim como Sobre café e cigarros, de Jim Jamursch. Ou Janela da alma, de Walter Carvalho. Esse tipo de documentário constituído de vários sets filmados em momentos diferentes, com pessoas diversas, fazendo uma pequena e bem-ajambrada colcha de retalhos. No final, o produto é bacana.

Talvez seja a primeira vez que lamento que a palavra não me pareça o melhor recurso. Uma câmera cairia bem melhor. Mas vou tentar. Vou batizar meus personagens e até arriscar uma direção de cena. Vamos lá.

Cena 1

Jorge chega à padaria às cinco da tarde. O sol está forte, mas o toldo velho e amarelo tenta segurar a luz e refrescar o ambiente. Jorge escolhe pães, sucos e umas samantilhas. É hora do café. Muitas senhoras chegam à padaria no mesmo horário. Muitos garotos. A fila para embrulhar o pão fica maior a cada minuto. Quando vai ao caixa, Jorge espera que a moça lhe faça as contas, registre tudo, dê o preço. Enquanto ela põe tudo numa sacola branca, Jorge tira moedas da carteira. Antes mesmo de efetuar o pagamento ou de pegar suas compras, uma senhora arbustiva empurra, pressiona pelas costas, até que, finalmente, passa os braços por cima de Jorge e coloca os pães na frente dele. Ele retira os pães da mulher, devolve o pacote a ela e pede que aguarde com paciência. E alguma educação.

Cena 2

Cristina dirige. Pega o carro novo e pretende ir até a casa dos avós. Passa por muitas esquinas, devagar, olha para os dois lados antes de atravessar. Pára na esquina movimentada. À sua frente, uma avenida de bairro, mão dupla, muitos carros, trânsito rápido. Enquanto ela espera para atravessar, olha no retrovisor. Nota, estarrecida, que uma mulher num Fiat Uno (muito mal-conservado, por sinal, e não à-toa) tenta ultrapassar pelo canto direito, desesperadamente. O lugar era estreito, não haveria passagem para aquela mulher. De mais a mais, ela chegaria ao lado de Cristina e teria que parar. Ou provavelmente entraria correndo na frente de algum infeliz que estivesse na avenida. Cristina joga o carro um tantinho mais para a direita e fecha o resto de passagem para o Uno. Olha pelo retrovisor. Olha para trás pelo vidro. Olha como quem diz: espere a sua vez. Dá a impressão de que algumas pessoas não conhecem aqueles jogos infantis em que você tem que aprender a aguardar para jogar ou até perde sua vez.

Cena 3

Luiza espera o elevador chegar. Está parada, de braço dado com o namorado, no terceiro andar de um shopping de classe A. Pensa que ali pode ter gente mais bem-educada. Quando a porta do elevador se abre, umas pessoas fecham a passagem de quem está para sair dele. Improvável que consigam. O ascensorista, pouco delicado, pede passagem (o óbvio) para as pessoas que desejam sair. Só então quem esperava pode entrar. Entra um casal. Entra uma adolescente. Entram duas moças conversando. Entra um senhor. Surpreendentemente, ele pára de costas para a porta do elevador. Pára. E fica. Não deixa que outros entrem. Não nota que há mais gente querendo subir ou descer. É necessário que Luiza e o namorado peçam licença ao senhor para entrar no elevador. E o moço ainda faz cara feia, como quem achasse que estava tudo certo.

Cena 4

Marcelo está na direção de um Gol. São 19h e ele está louco para chegar em casa, rever o filho pequeno, tomar um banho, esperar que a esposa também chegue do trabalho, dispensar a babá. Passa pela avenida, pára no sinal, vira à direita, esquerda, mais uma. A rua de casa é movimentada. Ele faz a curva e dá sinal de que vai virar, entrar na garagem da própria casa. Por essa manobra necessária para chegar em casa, Marcelo tem o carro abalroado por uma Kombi e é xingado. Um motorista, aos berros, lança todos os palavrões de que dispõe no momento a Marcelo. Isso tudo porque o homem queria chegar em casa. Isso depois de sinalizar com as setas do carro e com acenos de mão.

Cena 5

Cassiano e Heloísa estão no supermercado. Fazem compras para o mês. Uma listinha, um hipermercado conhecido, horas lá dentro para encher o carrinho. As filas do caixa são grandes. As pessoas têm que ter paciência. Todos estão ali para fazer as mesmas coisas. Enquanto enfrentam a pequena e demorada fila, Cassiano e Heloísa são pressionados pela família (inteira) do carrinho de trás. Eles conversam alto, se escoram no carrinho de Cassiano, empurram a fila com o carrinho deles mesmos.

Cena 6

Gil tem mais de 60 anos e prioridade em todas as filas, do banco ao supermercado. Por uma questão de timidez, prefere entrar na fila e esperar. Naquele dia, ele foi com a filha mais nova à casa lotérica. Uma aposta para o futuro. Quando era a vez dela, um outro senhor maior de 60 anos entrou na fila sem dizer oi, sem pedir licença, sem dirigir aos dois um olhar sequer que significasse um pedido, um gesto micro de educação. Gil e a filha compreenderam, instantaneamente, que o senhor postado ali tinha prioridade no atendimento. Mas Gil também tinha. No entanto queria cobrar não a posição na fila ou a frente diante do caixa. Gil e a filha queriam saber por que certas pessoas confundem direito com truculência, prioridade com falta de educação.

* * *

Essas cenas me deixam tão curiosa! Há alguns anos, lembro de ter lido um texto sobre urbanidade. Era alguém falando sobre a educação no comportamento das pessoas que moram em cidades, especialmente em cidades grandes. O autor daquele texto fazia um constraste entre pessoas que moram em áreas rurais e aquelas que residem em prédios e casas da capital.

As pessoas "da roça" sofrem certo preconceito da parte dos urbaninhos de plantão. São consideradas, mesmo que de maneira não-declarada, os "jecas", menos instruídos, menos interessantes, provincianos, cafonas. Bom mesmo é nascer na cidade, morar em apartamento, andar de carro no trânsito fulminante dessas capitais tão sem glamour. Será?

No interior, testemunhei as maiores demonstrações de civilidade da minha vida. Foi lá que vi uns meninos pedindo desculpas, licença e por favor, coisa que os marmanjos de São Paulo ou de BH se esqueceram de aprender. Também me lembro de ser convidada para entrar, de recusar um café feito na hora, de ir a um banheiro limpo, de comprar pão na porta de casa. Também lá me mostraram com dedicação o caminho que me levaria ao museu, à fazenda ou à loja principal. Não havia gente jogando o carro pra cima de mim e nem buzina desesperada na hora de atravessar a esquina.

Na cidade grande, a gente acha estranho quando alguém dá passagem. Da última vez que um homem puxou uma cadeira pra eu sentar, fiquei sem ação. Pensei que fosse trote. Era gentileza, e eu havia me esquecido de que isso existia.

Minha rua também é movimentada. Liga duas avenidas grandes. Muitos carros passam por aqui. Quando alguém me deixa entrar em minha garagem sem fazer estardalhaço ou me chamar de "filha da p.", agradeço, abano as mãos em sinal de graça, fico surpresa. Penso até que tenha sido distração dos estúpidos de plantão.

Por que será que a gente acha que é melhor e fica tão imbecil? Por que será que a gente acha que os outros são piores e não nota o quanto a gente perdeu o sentido das pessoas? De que adianta ter apenas o sentido das coisas? Quem aí ainda ensina o filho a pedir, em lugar de dar ordem? Quem será que se lembra de pedir licença, mesmo a uma criança, para dar o exemplo? E as desculpas? É alguma vergonha intransponível pedir desculpas? Curioso.

Ana Elisa Ribeiro
São João Del-Rei, 22/2/2006

 

busca | avançada
105 mil/dia
2,0 milhão/mês