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Quarta-feira, 29/3/2006
Sou da capital, mas tenho cura
Ana Elisa Ribeiro

Toda vez que peço algo ao meu filho de um ano e meio e ele me dá, olho bem nos olhos dele e falo: Obrigada. Faço questão de olhar nos olhos dele. Faço questão que ele perceba, já que ainda não entende direito, que eu disse algo amistoso a partir da ação dele. Faço questão que ele perceba que tive a intenção de dizer Obrigada. Não aquele obrigada escondido, mal-articulado, mecânico. Não. Tomara que isso já seja alguma coisa. Eu acho que é. Dependendo da cidade onde eu vivo com ele, isso é muita coisa.

Não quero que ele sofra por ser minimamente civilizado. Não quero que seja ridicularizado por saber pedir desculpas. Não quero que seja considerado um bobo porque não compete o tempo todo com os "amigos". Não. Mas eu quero muito que ele seja um homem, menos que uma anta. Toda vez que vejo um bípede estúpido e metido a gente agindo como se fosse melhor, penso assim: ai, Deus me livre de meu filho ficar assim. É isso que eu penso.

Já dei aula para crianças. Meninos e meninas de 8 ou 9 anos, uma quarta série do ensino fundamental, em escola particular. Bairro de classe média. Alguns emergentes. Gente que tinha carro do ano, conhecia Miami, ia para a praia duas vezes por ano. Coisa assim.

Certo dia, uma mãe veio até a porta da sala. No ensino fundamental, é comum os pais quererem conhecer a professora. Ótimo, mas não é só isso. Também é comum encherem a professora de perguntas sobre o pimpolho. Em geral, aquele menino ou menina normal é considerado, em casa, um gênio. Mas não é só isso. É comum a mãe ir até a sala da professora todos os dias. A impressão que dá é que a perua fica garimpando um comentário, um elogio, claro. E eu nunca tinha isso na ponta da língua. Em geral, eram meninos mimados, problemáticos, lentos, bagunceiros, arrogantes. Não havia elogio para eles todos os dias. Também é comum as mães quererem ensinar à professora como se dá uma aula, determinar o tema, o conteúdo e questionar inquestionáveis fracassos em provas. É comum uma tremenda falta de respeito pela profissão de professora. Ah, o óbvio.

Essa mãe, em especial, era perua, esposa de piloto de avião, fazia sexo uma vez por mês, deixava o filhote na escola e ia para o shopping. Voltava à tarde para buscar o guri e fazer perguntas. Como eu, a professora, nunca respondia grande coisa, ela começou a falar mal de mim para a supervisora. Que eu era uma professora insossa, calada, "mosca morta". Interessante era que a supervisora fazia questão de me contar. O tom era o seguinte: fale bem do filho dela. Ela paga a mensalidade.

Em alguns meses eu havia saído dessa escola. Guardo de lá apenas este tipo de lembrança. Mas vejam o que pode fazer uma professora para resolver coisas que os pais desses infelizes não resolvem. O garoto em questão era insolente, mal-educado, egoísta e maldoso na relação com os colegas. Já aos 8 anos, era competitivo e pouco razoável. Do tipo que trazia os melhores brinquedos e tênis para a aula para humilhar colegas com menos poder aquisitivo. Como se isso fosse a garantia de alguém.

Certa vez, estava eu dando uma aula de Português e usava como texto-base uma campanha de educação no trânsito. O interessante das crianças é que, muitas vezes, elas ajudam a educar os pais quando aprendem algo na escola. Isso funciona muito bem com assuntos sobre meio ambiente. É comum que crianças reprovem os pais que jogam lixo no chão ou pela janela do carro. A transmissão é quase imediata. A multiplicação desse tipo de informação, também. Aquela aula falava sobre uso dos faróis, da buzina e de vários outros aspectos da educação no trânsito.

Todos os alunos se esmeravam em dar exemplos acontecidos com pais e parentes próximos. Pulularam os casos de fechada, batida, xingamento. Até que o filho da perua pediu a vez para falar. Interessante que tenha pedido, coisa rara. Contou, com muito orgulho, que o pai tinha uma arma dentro do carro. Que certa vez ele próprio, a mãe e o pai-herói iam para a casa da avó. O pai dirigia com rapidez, mostrava a potência da máquina, falava alto. Fechou um carro que vinha devagar, buzinou, xingou de "veado". O menino ria muito. Adorava aquela balbúrdia. Na segunda fechada que deu, o pai foi chamado de filho da p. Parou o carro, pegou a arma e ameaçou os ocupantes do carro fechado.

O menino contava essa história com os olhos orgulhosos, como se o pai fosse um campeão de vôlei, um iatista, um cantor talentoso, um bombeiro condecorado, um grande professor. Falava como se aquilo fosse exemplo para todos. Concluía que o pai saíra na vantagem, que os ocupantes do carro fechado ficaram acuados, que não disseram nada, que pediram desculpas por terem xingado, que o pai entrou no carro sorrindo e guardou a arma no mesmo lugar.

Depois do "causo" armado, os meninos da sala, todos, olhavam o colega em silêncio. Muitos, garanto, com inveja por não terem um pai valentão como aquele. Outros haviam perdido algumas noções do que tentavam aprender em casa, com mães mais inteligentes e conscientes. Outros, por sequer terem pai. Afinal, o que está certo? Como viverei melhor? Onde a vantagem? E a pergunta que não quer calar: O que pode fazer uma professorinha diante de tanta merda?

Não é a cidade. Não é o progresso. Não é o título de doutor. Não é o diploma. Não é o computador. A energia elétrica. O banho de ducha. O carro flex. As férias na praia ou no exterior. As línguas que se fala. A escola particular. A cidade de milhões de habitantes. São Paulo ou Maria da Fé. Não é porque está na orla ou longe do mar. Não é o sotaque. Não é a família integrada. Não é porque é filho de pais separados. Não é o curso de Medicina. Nem o de Geologia. Não é porque sabe inglês, francês ou latim restaurado. Não é porque lê. Nem porque compra DVDs de Cannes. Não é porque dá aula. Porque trabalha de terno. Porque dá cursos de bermudas. Não é nada disso. Se mora na roça ou se mora no centrão da cidade. Se mora em prédio alto ou em palafita. O negócio é a falta de uma educação muito sutil. Muito sutil para quem tem. Para quem não tem, parece coisa de "jeca".

Quando fui ao interior, queria comprar uns ganchinhos de pendurar coisas. A moça da loja me mostrou outras coisas que ela vendia. Almofadas, vasos, quadros. Eu não quis. Disse então que me mostraria uma coisa maravilhosa. Trouxe lá de dentro umas rosas de ferro, de cor de ferrugem, rústicas e grandes. Pôs no chão e disse, com olhos que sorriam: Ficam lindas espalhadas pelo jardim. Era sincera, mas notou meu olhar de vazio. Disse, então, com ares de perdão: Ah, você não tem jardim, né? Mora em apartamento? Feliz é aquela moça, que ainda não entende os sórdidos sentidos de alguém que prefere morar numa gaiola, dividir a morada com mais dez vizinhos, pagar condomínio caro e rezar para que a garagem não amanheça arrombada. Ah, mas eu moro na cidade. Grande. Grande coisa.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 29/3/2006

 

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