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Terça-feira, 28/2/2006
Música é coração, computadores, não?
Ram Rajagopal

Esta semana resolvi aprender a tocar violão e fui comprar o meu primeiro instrumento. Por uma daquelas coincidências do destino, um colega meu de doutorado havia comprado uma bateria para reaprender a tocar o instrumento do qual havia se afastado há 8 anos. Só que como ele mora num pequeno conjugado, e seus vizinhos reclamam até pelo som que sai do seu computador portátil, meu amigo surpreendeu: comprou uma bateria eletrônica da Roland. Completamente surpreso, fui ouvir sua bateria para decidir que tipo de instrumento eu deveria comprar: um violão acústico-elétrico? Uma guitarra? Só um violão? Não comprar nada?

E para minha imensa surpresa, a bateria dele tem um som fantástico. Além de permiti-lo treinar o dia inteirinho usando um headphone. O primeiro baterista que não incomoda o vizinho que eu conheço. Digo que é surpreendente, porque até bem pouco tempo atrás, os instrumentos digitais eram incomparavelmente inferiores aos seus semelhantes analógicos ou mecânicos. Mesmo um teclado top de linha de uma empresa conhecida, como a Roland, não era páreo para o som de um piano razoável. Era difícil conseguir produzir um som parecido, com a mesma riqueza de tons e texturas. Os instrumentos eletrônicos acabaram criando todo um estilo musical, com grandes expoentes como o Kraftwerk e o Depeche Mode. Ainda assim, somente após muitos anos o teclado básico e os pedais de distorção digitais foram aceitos com naturalidade como sendo partes do equipamento de uma banda.

Hoje o jogo está começando a virar. Impulsionada pela música eletrônica, e (por que não?) pelos experimentos sonoros dos Beatles e Pink Floyd lá na década de 60-70, os músicos passaram a aceitar o componente digital como sendo naturalmente parte de sua música. Hoje em dia, fazer algumas das desconstruções musicais que os Beatles fizeram para o Sgt. Peppers', usando fitas e tesouras e bastante tempo, são uma questão de segundos. Os dois fatores mais importanes para isto foram a popularização do formato digital para CDs e DVDs e a evolução dos sintetizadores e digitalizadores para computadores. Ou seja, simplesmente se tornou mais fácil, barato e melhor usar um computador e equipamento digital para se fazer música.

Mas tudo isso aconteceu na sala de produção. Para a maioria das pessoas, o som de um Rolling Stones ainda é o da guitarra de Keith Richards ao vivo no palco. Apesar do teclado aparecer como substituto do piano em algumas formações de bandas conhecidas, o instrumento digital não se tornou figurinha fácil no palco. Tudo isso está começando a mudar com a música eletrônica, e a tendência está se fortalecendo com a evolução fenomenal dos chips de processamento digital, que, além de muito mais potentes, se tornaram bem mais baratos. Depois de ouvir a bateria do meu amigo, acredito que é só uma questão de tempo para que uma bateria digital seja a bateria de uma banda de rock conhecida.

Ainda assim, algo me incomodava na tal bateria eletrônica. Justamente os anos de catequese de que o som de um instrumento analógico é mais puro que um instrumento digital. Assim como ouvir LPs com seus chiados característicos é mais puro que ouvir um belo CD remasterizado. Gosto de chamar isto de puritansimo tecnológico. Somos todos apegados ao que estamos acostumados, até que novas gerações virem o mundo de cabeça para baixo, e demonstrem o quanto estávamos errados. No mundo digital, isso vem acontecendo com velocidade impressionante. Ou alguém imaginava que ouvir MP3 num iPod poderia ser quase tão bom quanto a ir a um show de sua banda predileta?

Estudando um pouco a história do violão, descobri que mesmo a fabricação deste instrumento dependeu de várias inovações tecnológicas. Ou seja, o violão e seu som acústico-analógico são tecnológicos, quase digitais. Métodos mecânicos de fabricação foram aperfeiçoados, e materiais ideais estudados e simulados em computadores, para que violões de alta qualidade e cada vez mais baratos pudessem ser fabricados em massa. Obviamente, luthiers artesanais ainda ocupam uma posição de destaque no mundo da música. Mais ou menos pela mesma razão que uma pessoa ainda prefere um Aston Martin a um Lexus. Tudo isso para dizer que o tal puritanismo tecnológico muitas vezes ignora a história...

A inclusão dos instrumentos no mundo digital levanta uma outra questão, bem mais delicada: qual seria a importância do virtuosismo musical? Utilizando tecnologias como Máquinas Microelétricas (MEMS), dentro de vinte anos já poderemos fabricar instrumentos digitais que ultrapassam em qualidade os melhores instrumentos analógicos. O instrumento digital tem um grande diferenciador sobre o seu equivalente tradicional: pode ser programado. A bateria digital poderá ser programada para que a velocidade da batida seja multiplicada tantas vezes quanto desejada. Uma baquetada poderá soar como quatro independentes. E por aí vai. Neste futuro diferente, qual seria o papel de um solo? Porque um músico ainda investiria no aprendizado do domínio mecânico total de um instrumento? Talvez neste futuro, ser original seja ser capaz de compor melodias originais. Mas já estamos próximos de programas de computadores que geram pedaços de melodia agradáveis. Qual seria o papel do músico?

Não tenho respostas para estas perguntas. Mas tenho uma espécie de teoria, que talvez explique o porque somos fascinados por música, e por seus artistas: música é coração. O que me encanta na música é o arrepio gerado por um solo de guitarra, ou o coração batendo mais forte por aquela melodia para lá de conhecida. A mesma emoção, a mesma adrenalina, é o que entusiasma o músico para compor e dominar um instrumento. A possibilidade de ir além das imagens mentais, em uma espécie de transe, ao se dominar um instrumento parece ser o que todos os grandes músicos se apegaram para terem se dedicado as incontáveis horas de treinamento. Na Índia, um músico de cítara só atinge o nível de mestre depois de mais de 30 anos de prática. Conversando com alguns destes músicos, e até lendo uma entrevista do Deus da guitarra Eric Clapton, percebi que o grande barato da música é ser capaz de flutuar, de desaparecer perante ao êxtase sonoro sendo gerado, de saber que os dedos, a boca, o braço, as pernas agem independentemente do pensamento, uma espécie de ligação direta, com direito a um high químico do organismo.

Mas será que isto seria impossível com os computadores e seu mundo digital? Não necessariamente. Mas certamente só será possível quando o ato de compor ou tocar o instrumento digital demandar tanta concentração e atenção quanto com o seu equivalente analógico. Somente se a composição e performance digitais exigirem a dedicação e o controle mental que um Steve Ray Vaughan tinha no momento em que tocava sua guitarra. Ou seja, quando o universo digital absorver nossa mente, e exigir esta absorção para a maestria, que a música de ponta exige hoje. Simultaneamente, o instrumento terá que permitir que o indivíduo que domine as técnicas seja capaz de criar sons ricos e inesperados. Senão, será mais uma atividade em que os virtuosos irão perder o interesse. Mais ou menos parecido com o que vem acontecendo com o simples ato de fazer contas (grande especialidade de Gauss), ou jogar xadrez.

Ou seja, se o computador exigir o coração e a alma. Impossível? Nada é. Estamos longe disso? Duvido. Mas iremos logo descobrir. Eu acredito que o homem é maleável o suficiente para continuamente criar atividades que o absorvem em qualquer campo de ação. Quanto ao meu instrumento, depois de divagar um pouco, acabei comprando um instrumento pelo qual me apaixonei: um violão Yamaha FG700S com cordas de aço. Ou seja, nada digital. Estou até com bolhas nos dedos...

Ram Rajagopal
Berkeley, 28/2/2006

 

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