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Quarta-feira, 12/4/2006
E-mail (devassado) para meu filho
Ana Elisa Ribeiro

Meu filho,

Tudo bem com você? A esta hora você já deve estar dormindo. Fico preocupada com seu sono. Espero que seu pai tenha fechado a janela e a persiana. Lastimo quando os mosquitos atacam você durante a noite. Lastimo os seus pesadelos. Também me preocupo com seu frio ou com seu calor. Se estiver quente demais, deixe de lado as cobertas. Jogue fora o lençol. Mas deixe tudo sempre à mão, para o caso de uma chuva súbita que esfrie o mundo. Se fizer frio, tome nas mãos a coberta e estenda-a sobre seu corpo. É melhor assim. Não tenha preguiça de fazer essa manobra. Vou lastimar se você se resfriar. Teremos que esperar que a gripe passe.

Amanhã, pela manhã, você vai acordar e eu não estarei aí. Será mais doce o dia, no entanto as saudades haverão de incomodar. Não pense nisso. Viva o dia com firmeza. Espante o desânimo. Quando se lembrar de mim, sinta um pequeno prazer abundante. Abra os olhos, certifique-se de que está em casa. A parede azul, o quadro azul, o boneco austríaco, o guarda-roupas. Levante-se e chame seu pai. Ele levará seu café-da-manhã na cama. Coma sozinho, mas olhe sempre para o dia pela janela. Peça a ele para abrir a persiana e fazer correr os vidros. Deixe o ar entrar, renove tudo. Deixe também a luz do Sol tomar conta do quarto. Observe: dá a sensação de que é uma vida nova. Diariamente.

Também é importante ouvir música. Pode ser irritante escolher um ritmo muito rápido. Selecione, com seu pai, uma música adequada para uma manhã de cores. Tentem uma voz feminina pulsante ou rouca. Uma diva, por exemplo. Alimentem-se disso enquanto tomarem café. Faça planos curtos, por enquanto.

Ao final da manhã, chegará a hora do almoço. Peça ao seu pai para preparar uma massa fina. Ele saberá o que fazer. Um molho rosado, verdes, folhas, ervilhas, palmitos. Diga a ele que está liberado o refrigerante, ao menos para os dias de prazer. Mas não exagere. Comam juntos, bem juntos. Não desgrudem os corpos um do outro. Não liguem a televisão. Antes que seu pai tenha essa idéia, tire o cabo de força da tomada. Ele terá preguiça de encontrá-lo. Falem de amor, de Sol, de planos que podem mudar. Lembrem-se da vovó, dos tios, das histórias de fadas, dos jogos cooperativos. Conte a ele que você quer água. Insinue que deseja tomar um banho. Escolha o sabonete. Pode usar o meu, verde, de limão e açúcar.

Peça ao seu pai para lhe oferecer uma sobremesa. A mais doce. Abram uma lata de doce de leite. Ou tome leite condensado no furo da lata. Ou pêssegos em caldas. Ou pudim. Ou chocolate com amêndoas. Ou não coma nada e vá se deitar. Peça ao papai que o acompanhe na sesta. Finjam que vestem chapéus de mexicano. Mudem a música. Liguem a tevê para assistir ao jornal. Mas, saiba: se ouvir uma notícia ruim, desligue e ouça uma música alegre.

À tarde eu voltarei. No final da tarde, quando o Sol fizer a última curva sobre a Serra do Curral, eu chegarei em casa. Faço questão que você olhe pela janela. Espere olhando na direção do portão. Quando ele se abrir, acompanhe, com os olhos, o carro preto passando sob os pilares do prédio. Ouça o ronronar do motor, meus passos na garagem, o ronronar, o alarme ativado. Espere pelo barulho do meu tênis nas escadas. E quando eu abrir a porta, finalmente, tenha no rosto aquele sorriso solar, diga "oi" com a entonação que aprendeu comigo e mire-me com o olhar que você tinha quando era bebê de um ano e meio.

Meu filho, se há algo que lamento muito é que não tenha podido gravar aquele seu olhar! Não havia sequer uma sombra naqueles seus olhos. Quando eu brigava com você, você me desmentia. Quando eu era estúpida e impaciente, você me driblava. Quando eu negava algo, você me demovia. Tudo com os olhos. Tirei tanta foto, tanto álbum completo, e o seu olhar era inapreensível. E quando você me abraçava com o olhar, daquele jeito, eu morria, mas morria de saudades de você. E eu descobria, todo dia, o que era o amor.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 12/4/2006

 

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