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Segunda-feira, 10/4/2006
Chomsky ontem e hoje
Ram Rajagopal

"Inquestionavelmente, o mais importante intelectual vivo"
New York Times

"Chomsky se equipara a Marx, Shakespeare e a Bíblia como uma das dez fontes mais citadas no que diz respeito ao conhecimento humano"
The Guardian

Estou aqui na minha mesa com o livro Para Entender o Poder: O Melhor de Noam Chomsky (Bertrand Brasil, 2005, 541 págs.). Noam Chomsky é um dos maiores pesquisadores de linguística vivos. Uma de suas idéias, a classificação e axiomatização de partes da gramática, acabou sendo utilizada em Ciência da Computação para criar linguagens de programação e os famosos compiladores. Este livro, no entanto, se concentra na que seria a segunda atividade de Chomsky, mas que parece ter ocupado a maior parte dos seus últimos 30 anos: o ativismo político.

Sem dúvida, Noam Chomsky é uma das melhores referências vivas para aqueles que se consideram socialistas ou até comunistas. O autor é um bom escritor para o tipo de livros que escreve, e sabe amarrar os vários argumentos que os ativistas socialistas vêm usando há anos com fatos cuidadosamente escolhidos e descritos sob o seu ângulo de interesse. Esta competência já o coloca em um nível acima da maioria dos comentaristas políticos brasileiros.

Infelizmente, Chomsky comete um pecado que, a meu ver, compromete o livro para quem não é afeito a crenças: acredita no seu próprio pensamento político. O autor escreve demasiadamente comprometido com aquilo que acredita e estrategicamente ignora fatos ou formas de pensar que o levem a conclusões diferentes daquelas que sua crença estabeleceu para si mesmo. Faz isso com sofisticação. Não é a toa que conquistou legiões de fãs entre simpatizantes de suas escolhas políticas. O domínio da retórica intelectual certamente convence aqueles já inclinados a aceitar as proposições do autor. Por outro lado, não instiga aqueles que não se afeiçoam ao modelo propalado.

Para mim, que fui treinado através da minha profissão para constantemente questionar as premissas por trás de cada idéia, os textos de Chomsky me parecem escritos para sua legião de seguidores. O que não é surpreendente, uma vez que Para Entender o Poder é uma coleção de textos retirada de colóquios e debates (todos com lotação esgotada, como faz questão de frisar a orelha do livro) entre 1989 e 2000. Os textos mastigam e destilam a essência da crença chomskiana sobre como funciona o mundo e o poder e propõem, de vez em quando, idéias estilizadas - ou seja, sem cunho prático - sobre o que teria que ser mudado para que a sociedade passasse a funcionar de acordo com os axiomas do autor.

Talvez por ser plenamente aceito no mundo acadêmico, quase todo inclinado a seguir as mesmas crenças axiomáticas de Chomsky - que, por via das dúvidas, é bem mais sofisticada do que o que a academia socialista brasileira prega há décadas -, o autor não tenha se dado ao trabalho de escrever discursos em que analisa suas próprias premissas. Tão pouco endereça este questionamento em seus debates públicos.

Eu mesmo tive a oportunidade de assistir a um "debate" público com Noam Chomsky na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Na época, o Centro de Tecnologia tinha dinheiro para contratar palestrantes e contribuiu com o cachê de uma turnê de Chomsky pelo Brasil. Lembro bem da ocasião, pois não é qualquer hora que se encontram cerca de 300 alunos de engenharia, de um total de 400 pessoas, prontos para ouvir um debate sobre "Tecnologia e a política do século XX" ou algo parecido. Eu estava bastante entusiasmado com a possibilidade de ouvir as idéias deste intelectual, e a expectativa era alimentada pelo rebuliço em torno de sua personalidade e seus textos.

A palestra foi uma grande lição. Em primeiro lugar, não houve debate algum. Houve, isso sim, infiltrados entre aquelas 400 pessoas, um certo número de ativistas estudantis e polítcos, inclusive membros de carteirinha do PT, PC do B e UNE, que levaram até bandeiras para o local. Chomsky falava lentamente e mal conseguia se articular, talvez pela idade avançada ou pela viagem. Cada parágrafo do seu discurso terminava com bordões do ativismo político socialista. Coisas como, "portanto, devemos dar um fim a este sistema exploratório!". A cada exclamação, a turba de infiltrados se manifestava como se fosse torcida de futebol. Este processo continuou por algum tempo, até que os demais alunos começaram a gritar "cala a boca!", "cala a boca!" para a torcida organizada.

Antes de se iniciarem a sessão de perguntas e respostas, tive a impressão de que Chomsky já era uma sombra de si mesmo, uma caricatura. Cansado e desinteressado, ele começou a responder burocraticamente às perguntas da platéia. A maioria das perguntas era alinhada com o que ele havia dito. Não havia um só questionamento, uma só dúvida sobre os axiomas. Na verdade, muitos dos ativistas estudantis tinham prioridades sobre as perguntas. Passaram, então, uma lista para propor perguntas para o debatedor. Coloquei duas questões sobre suas premissas quanto ao efeito político do desenvolvimento tecnológico. Lembro que fiquei ansioso pela resposta.

Quando leram as minhas perguntas, Chomsky respondeu dizendo que "já abordei esta questão, e ela está de desacordo com o princípio xyz estabelecido por mim em mno". A banca de debatedores, composta de professores da UFRJ, em vez de pressioná-lo por uma resposta, meramente abanou a cabeça embasbacada pela oportunidade de estar com o socialista superstar. Infelizmente, a tarde prossegiu com mais algumas perguntas, que só eram respondidas quando eram alinhadas aos axiomas apresentados. Coisas do tipo: "Eu concordo com o senhor, e gostaria que o senhor explicasse melhor porque a idéia xyz é tão boa". Em geral, todas vindas da turba infiltrada.

A encenação chegou a um ponto que os engenheiros, percebendo que muitas de suas perguntas não seriam respondidas, começaram a vaiar. Boa parte já estava ali pelo famoso coffee break a ser oferecido ao final da palestra. E, quando notaram o triste espetáculo de torcida organizada, se entusiasmaram mais ainda a pedir o fim do pseudodebate. Um colega meu, muito mais interessado em biscoitos do que em Chomsky, começou a gritar "Fora, Chomsky! Fora, Chomsky!". Isso, somado as vaias, gerou tumulto. Os professores tentaram apaziguar a situação. Como o tempo de bajulação do ilustre intelectual estava quase no fim mesmo, decidiram encerrar o debate com "obrigado pela participação de todos, e agradecemos especialmente o ilustre Prof. Chomsky, que nos agraciou esta manhã com um debate iluminado". Assim que foi dita esta frase, a torcida organizada começou a bater palmas, e os engenheiros, a gritar "aeeeee, aeeeee, aeeeee". Meu amigo urrava feliz: "Fora, caquético! Queremos biscoito!". E assim terminou o grande debate. Acho que foi tudo registrado em câmera, e está no acervo do Centro de Tecnologia da UFRJ, para quem se interessar.

Para mim, não foi completamente inútil. Serviu para aprender como muitos intelectuais se sustentam hoje em dia: têm uma idéia consolidada sobre o que acreditam, escrevem sobre isto, conquistam fãs e se alienam das questões que, porventura, minem seus axiomas. Podem até tentar usar os axiomas para explicar fatos que, à primeira vista, não estejam de acordo com suas pregações. Mas raramente se dá o debate verdadeiro, com perguntas e respostas sinceras. Bem parecido com a maioria das perguntas respondidas no livro Para Entender o Poder, que muito infreqüentemente deixam de ser perguntas que servem como trampolim para Chomsky. Exemplo: "Sr. Chomsky, eu me pergunto, como o senhor explica o nosso embargo a Cuba, por que isso ainda acontece e poderia falar um pouco de nossas políticas por trás disso ao longo dos anos?".

Um mérito do ativismo Chomskyano é não se prestar a ter posicionamento político sobre todas questões. É muito difícil uma certa forma de pensar e, no caso um destilamento de uma forma de pensar do século passado, ter respostas para todas questões. Talvez a leitura de Chomsky ajude um pouco aos atuais políticos no poder a entender o limite prático de suas convicções e crenças. O ponto a partir do qual se torna ridículo e improdutivo tentar domesticar a realidade com um conjunto de axiomas. Apesar deste mérito, e da suposta coragem ao se falar contra o governo dos EUA - se bem que, neste país, todos os acadêmicos praticamente falam contra os EUA e nunca deixaram de receber fundos por isso -, acho que para quem questiona como o mundo funciona existem outros livros.

Para aqueles que querem argumentos sofisticados para apoiar suas crenças socialistas, ou até que queiram entender o pensamento socialista moderno e seu uso (abuso) da linguagem retórica e de figuras abstratas, Para Entender o Poder: o melhor de Noam Chomsky é uma boa opção. Mostra realmente aquilo que Chomsky tem de "melhor" no pensamento político.

Para encerrar, lembrei de mais um incidente que demonstra quão a sério este autor leva seu próprio personagem. Chomsky aparece num episódio do Da Ali G Show, onde o comediante Sacha Baron Cohen encarna alguns personagens e sai pelas ruas entrevistando e conversando com pessoas e personalidades. Neste episódio, ele era o rapper "Ali G". Ele entra na sala de Chomsky, e pergunta se ele é o famoso linguista Norman Chomsky. Chomsky, sério, responde que sim. O comediante então diz que inventou uma língua onde as palavras tem significados trocados. Chomsky, após tentar corrigir gramaticalmente o impagável rapper, diz que a língua inventada não faz o menor sentido. O pseudo-rapper insiste, e Chomsky fecha a cara e diz que "não tem tempo para estas brincadeiras". Ali G, se dando conta que o tempo fechou, encerra a discussão com "and to my language, man, Norman Chomsky, buyaaaaaaah!". O episódio encerra com Chomsky com cara de enfezado, e Ali G falando na língua que inventou.

Para ir além





Ram Rajagopal
Berkeley, 10/4/2006

 

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