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Segunda-feira, 10/4/2006
Guimarães Rosa e as aulas do professor Aguinaldo
Daniela Castilho

Eu imagino que deve ter muito mais gente por aí, talvez lendo isso aqui agora mesmo, que tenha sido aluno do professor Aguinaldo. O professor deu aula de Literatura no colégio Equipe e na Universidade Mackenzie, durante a década de 80. Eu tinha uns quinze anos quando comecei a ter aulas com ele no colégio.

Assistir às aulas do professor Aguinaldo era um universo à parte. Até hoje, vejo as pessoas falarem de literatura como se fosse alguma coisa árida, mítica, encriptada ou sabe-se lá o que mais. Para mim, desde pequena, sempre foi encantamento. Com as aulas do professor Aguinaldo, então, magia, pura magia.

Então tinha aquele sujeito, o Guimarães Rosa e seus livros. Eu já tinha lido sofridamente um tal de José de Alencar que me entediava à beira das lágrimas. Tinha sofrido horrores nas mãos de um português chamado Camões que tinha escrito uns Lusíadas do qual só lembro "das armas e dos barões assinalados"... era isso mesmo? Meu mundo se dividia em duas literaturas - as que meu pai me dava para ler, que incluíam Monteiro Lobato, Julio Verne, Lewis Carrol e Albert Camus, e que eu amava, amava - e aquelas coisas insuportavelmente chatas que professores de mau humor mandavam ler e que todo mundo lia porque ia cair no vestibular e tinha que lembra que "as armas e os barões assassinados" era de um tal de Camões - ou nem era?

Guimarães Rosa, não. Guimarães Rosa era outra coisa muito diferente. Primeiras Estórias. O professor Aguinaldo pediu-nos que comprássemos o livro e que não lêssemos. Ainda, não. Primeiro, ele sacou uma edição pequena e já bem usada de sua pasta surrada de falso couro marrom que fechava com um fecho de metal - rapaz, o que tinha de coisa especial naquela pasta - folheou o livreto, arrumou os óculos redondos de aro no nariz e falou - eloqüentemente, como era seu modo de ser - de como Guimarães Rosa era um sujeito que tinha nascido no meio do sertão das Minas Gerais - que, claro, nenhum de nós conhecia, crianças de cidade. Fui ver uma vaca pela primeira vez aos vinte e dois anos de idade, já formada em Artes Plásticas e dando aulas de artes numa escola tombada pelo Patrimônio Histórico no interior do estado de São Paulo, as vacas pastando no horizonte de aquarela, capim verde, céu azul, meus alunos de seis anos me explicando que vaca usa brinco, dona, que é pra identificar. Mas, então, o Guimarães, o sertão.

O professor Aguinaldo abriu o livro amassado, folheou, secou o suor da testa, começou a contar como tinha conhecido Guimarães e como era o sertão do Guimarães, ficou folheando, folheando - disse algo como "ah, vamos ver isso" - e leu:

"Foi de incerta feita - o evento. Quem pode esperar coisa tão sem pés nem cabeça?"

E parou. "Não, não é isso que eu quero ler" - disse, continuando a folhear o livrinho pardacento e amassado. "Ah, é isso".

Novamente, arruma os óculos, comenta que está calor e ameaça começar a ler. Fecha o livro. A classe ri. O professor olha para nós com seriedade. "Não, eu não vou ler, eu vou contar" - e começa a contar a história de como uma moça filha de mãe leviana foi abandonada pela família e é entonce acolhida em uma fazenda de polvilho. O polvilho, como sabemos, é farinha de mandioca crua, curada, branco, branco. O trabalho da moça, muito agradecida pela acolhida em sua má fortuna, é quebrar mandioca para fazer a farinha do polvilho. O calor grassa. O trabalho é duro. O professor transpira. A classe escuta em silêncio. A mandioca branca, moída e sovada pelas mãos nuas da moça se torna um caldo branco de grude, mandioca brava, as pessoas todas reunidas em suas roupas de algodão branco, sovando aquela mandioca que um dia vai virar farinha, mas que por enquanto é caldo grude branco que cola na mão, na roupa, no cabelo, cobrindo tudo de um branco de cal. A moça é triste, socando a mandioca. A moça sonha com coisas que não sabe se vai ter, se vai esperançar, porque é pobre e é triste, apesar de moça. A goma da mandioca, o polvilho branco porque a polpa da mandioca é branca, reverbera no sol. As pessoas cobertas de polvilho reverberam no sol. Transpiram como o professor Aguinaldo. E então, uma tarde quente e branca de polvilho, aparece o moço dono da fazenda no seu cavalo, no meio daquela brancura toda, reluzindo sol, um moço bonito de sorriso branco e dá de cara com aquela moça pobre coberta de branco e se apaixona. Um moço príncipe de cavalo para amar aquela moça pobre que tem tantos sonhos. A classe toda silenciosa escutando. O professor Aguinaldo ri, seca o suor da testa com o lenço branco, ajeita o óculos, olha para seus sapatos, pára e fala:

"Nossa, eu vim com uma meia de cada cor!" A classe ri. O professor ri, pega o livro outra vez. Seca o suor da testa com o lenço branco.

"Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais."

O sinal do final da aula toca, o professor fecha o livro, coloca na pasta amarrotada, pede pra gente ler para dali a duas semanas. Imagine, lemos para o dia seguinte, na urgência desesperada da curiosidade de quinze anos de saber mais do polvilho, do famigerado polvilho, a moça, o moço, o cavalo, o sertão.

Eu amo Guimarães Rosa, sempre vou amar, por causa do professor Aguinaldo e aquele seu jeito de mostrar o que as literaturas têm de especial. Bons tempos, professor, bons tempos.

Daniela Castilho
São Paulo, 10/4/2006

 

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