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Quarta-feira, 29/8/2001
Comum como uma tela perfeita
Paulo Polzonoff Jr

Tenho de pedir primeiro desculpas. Tenho um bom amigo que olhará o quadro sobre o qual escrevo e que dirá de si para si (ou de si para todos, se estiver num daqueles dias), que trata-se de um lugar-comum. Vou pedir então novamente desculpas, porque, meu bom amigo, são dois os lugares-comuns de que trato neste texto. Que posso fazer? Estou vivendo um dia comum hoje, de pensamentos comuns. Lia há pouco Fernando Sabino; ontem acabei um Rubem Braga. Nada mais comum e ao mesmo tempo perene que o cotidiano.

O quadro que você vêem acima chama-se Hotel Room e foi pintado por Edward Hopper, talvez o maior pintor americano de todos os tempos. Hopper faz uma arte que muitos consideram anacrônica porque, numa época em que era valorizada a abstração ou qualquer coisa que privilegiasse a imaginação (ou falta de) do pintor, ele fazia paisagens, cenas de rua e interiores. O quadro acima está num dos melhores museus europeus, o Tyssen-Bornemiza, em Madrid. Dê um pulo lá só para ver este quadro.

Hotel Room, vale a pena dizer, tem uma continuação, Summer Interior. Uso aqui o termo continuação de propósito, já que uma das influências claras de Hopper é o cinema. Vou falar sobre estes dois quadros, mas não como um expert, que não sou; vou falar como um subqualquercoisa, o que sou.

É difícil precisar a tristeza desta mulher sentada erroneamente na cama, neste quarto mequetrefe de hotel. Olhe para ela e verá que segura um pedaço de papel. Provavelmente uma carta, deduzo, sem nenhum brilhantismo. O que diz esta carta? Um homem a deixou, por certo. Disse que a amava, mas que não poderia continuar vivendo uma vida dupla com sua esposa. Sim, porque a mulher retratada no quadro deve ser uma prostituta ou uma destas “destruidora de lares”, como se dizia antigamente. Nosso julgamento moral, neste momento, diz que, então, ela que sofra mesmo, bitch! Só que. Olhe bem a luz entrando pela janela e iluminando aquele ser ali tão frágil e desprotegido. Sim, é uma luz divina que a ilumina e a transforma não num ser social, mas num indivíduo, cujas escolhas não nos cabe julgar. Desta mulher sentimos pena. Nossa mão quer se entender a ela, mas isso nos é vetado. Só nos resta a contemplação de sua dor. O gesto semi-perdido entre a tristeza e a tristeza. A mulher não se desesperou, ainda, mas vai se desesperar ao perceber-se só. E o homem, a quilômetros dali, também vai sentir-se só quando beijar a esposa que não ama. E quando deitar com ela, vai se lembrar daquela luz divina batendo nos cabelos da mulher que deixara sozinha no quarto de hotel. E rezará por ela.

A continuação do quadro chama-se Summer Interior. Não sei quanto a vocês, mas eu não vejo alegria nenhuma neste quadro. Sombrio, cheio de mofo e umidade, a figura feminina, ao menos para mim, é a mesma de Hotel Room. Só que nesta cena ela jaz no chão, semi-nua. O que passa por sua cabeça é o que queremos saber. Sofre, meu Deus!, mas como sofre. Ou será que deseja tanto que chega a doer?

O outro lugar-comum que evoco neste texto, peço mais uma vez perdão, é Van Gogh. Tentei ignorá-lo, mas ele está gritando. É um quadro perigoso. Campo de Trigo com Corvos. Escrevo centeio, mas alguns dizem o que é trigo. Eu, com meu parco conhecimento de agronomia, me abstenho de emitir algum comentário. Ora, há quem ache que é um quadro pessismista, mas eu discordo. Acho que trata-se de um quadro extremamente otimista. Até mesmo se levarmos em conta a situação em que foi pintado. Reza a lenda que Van Gogh o pintou pouco antes de se matar.

Acreditando nisso, vemos um caminho por entre uma plantação. No horizonte azul azul azul azul, corvos. Figuras de mau-agouro, mas que pairam acima de qualquer cabeça que almeje transpor aquele caminho. Um vento forte agita a plantação. É o sopro divino. E lá vai homem. Dá o primeiro passo, embaixo na tela. Ele nasce neste momento. E cada passo pode, às vezes, parecer uma eternidade, ainda mais com aqueles pássaros grandes e negros voando sobre nossas cabeças, mas quem dá o primeiro passo sabe, imediatamente, que chegará ao final daquele caminho. E cairá no poço azul profundo da morte. E é justamente esta consciência que o redimirá durante todo o percurso.

Desculpe se desaponto aquele que queriam análises sobre as pinceladas de Hopper e Van Gogh. Ao diabo com os experts! Confesso que, até escrever este humilde texto, tentei por duas vezes dissertar sobre quadros e temas. Só o que consegui foi ser entediante. Para quem chegou até aqui, aliás, eu sugiro que esqueça o que escrevi e que se detenha nos quadros de que trato. E que inventem histórias sobre aquela mulher no quarto de hotel e sobre aquele caminho no meio da plantação de centeio. E invente histórias sobre todos os quadros que vir, sejam eles comuns, como a Mona Lisa, ou enigmáticos, como os de Pollock. Surfe na onda de Katsushika Hokusai. Veja o mundo pelos olhos mais-que-perfeitos de Monet. Tema o mundo de Bosch. Masturbe-se com o erotismo galaniano de Dalí.

Em suma: seja comum como uma tela perfeita.

Paulo Polzonoff Jr
Rio de Janeiro, 29/8/2001

 

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