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Terça-feira, 16/5/2006
Reflexões para um mundo em crise
Luis Eduardo Matta

Vivemos num mundo louco. Disto, creio que poucos dos que se aventuram pelas veredas do pensamento, ousam duvidar. É um mundo insano, aparentemente cada vez mais destituído dos valores mais elementares do convívio humano e que, aos poucos, vai perdendo seus traços de civilidade, tornando-se gradativamente um território selvagem onde imperam a falta de respeito, a violência, a intolerância, a ganância desenfreada e, mais especialmente, a ignorância, que se manifesta, sobretudo, na nossa quase total incapacidade de refletir e enxergar a realidade sob um prisma mais equilibrado e despreendido. Tenho pensado muito nisso ultimamente. Saio às ruas, observo a vida em movimento à minha volta e utilizo os pequenos flagrantes do cotidiano dos quais sou testemunha como material para refletir sobre a condição humana atual e, dessa forma, lapidar e polir a minha própria percepção da vida. É um exercício permanente em que ponho a prova as minhas convicções, desafio os meus preconceitos (quem não os tem?) na tentativa de, senão extirpá-los, ao menos neutralizá-los e busco amplificar a minha capacidade de compreensão da realidade e de aceitação das coisas como elas são, o que inclui a mim enquanto pessoa e, por extensão, aos demais. Com isso, percebo que, a cada dia, me sinto mais plenamente "humano", me torno mais ciente da minha insignificância num planeta de bilhões de pessoas do qual eu, como todos, um dia irei desaparecer e acabo fazendo minhas as palavras do dramaturgo e poeta romano Terêncio quando, na peça Heauton Timorumenos (O atormentador de si mesmo) escreveu a célebre passagem: "Sou humano, e nada do que é humano me é estranho".

Num mundo como esse, a reflexão é essencial, mas tem sido pouco praticada por populações assaltadas pelas urgências de uma sociedade cada vez mais rápida e exigente, que nos ilude com o mito da liberdade irrestrita e do avanço da modernidade para, em seguida, nos seqüestrar a alma com massacrantes apelos consumistas, de perfeição estética e conquistas financeiras e sexuais, obrigando-nos a despender uma vida inteira escalando uma cordilheira que, no fim das contas, não nos levará a lugar algum. Eu pergunto: tem cabimento um jovem de dezessete/dezoito anos, ainda engatinhando na vida, ser forçado a escolher uma carreira profissional que, em tese, o acompanhará por décadas? Não seria mais apropriado ele fazer essa escolha um pouco mais tarde? Poucas coisas, hoje, me dão mais calafrios do que assistir ao depoimento de um profissional de recursos humanos discorrendo sobre tudo o que uma pessoa precisa fazer e estudar para conseguir e se manter num emprego. Além de uma boa formação universitária, há a necessidade do aprendizado constante e da reciclagem periódica; a impressão é a de que basta umas férias um pouco mais prolongadas para condenar o trabalhador à obsolescência. Essa verdadeira paranóia, compreensivelmente, deixa as pessoas bastante angustiadas, tensas, apressadas, egoístas, impacientes, doentes; invertem os valores, mutilam a ética, adulteram o caráter. É a sociedade do "salve-se quem puder" e do "cada um por si", onde vale tudo para sobreviver em meio à barbárie que se alastra por toda parte. O tempo livre é escasso e, conseqüentemente, não cede espaço para a reflexão. O ato de refletir, que poderia ser o caminho para a redenção dessa sociedade enferma, simplesmente, não é praticado, senão por uma minoria.

Foi numa semana em que essas impressões me fustigavam de forma particularmente incômoda que eu tive a satisfação de descobrir dois livros, ambos recentemente lançados pelo selo Vozes Nobilis da Editora Vozes, que podem auxiliar muitas pessoas a pensar sobre as próprias vidas, o caminho que estão trilhando e o ambiente à sua volta. O primeiro deles é o interessantíssimo Não Nascemos Prontos! Provocações Filosóficas, do filósofo e professor Mario Sergio Cortella (Vozes; 136 páginas; 2006). Lembro-me de haver conhecido Cortella pela televisão. Ele apresentava um programa muito bom na TV SENAC/SP cujo nome, se não me engano, era Modernidade. Infelizmente, o sistema de TV a cabo do qual sou um assinante não muito satisfeito, retirou o canal da sua grade, sem uma razão aparente e eu nunca mais assisti ao programa (nem sei se ele ainda está no ar). Agora, pude conhecer o Cortella filósofo e de uma maneira bastante gratificante. Seu livro é ótimo em todos os sentidos e pode ser lido com facilidade mesmo por quem não é lá grande adepto da leitura. Dividido em trinta e um ensaios breves, escritos de forma clara e repleto de referências literárias e filosóficas, Não Nascemos Prontos! Provocações Filosóficas levanta questões como a volúpia do consumo, a pressa contemporânea, os exageros e equívocos na nossa relação com a tecnologia e as responsabilidades da mídia, sobretudo a televisiva, na sua relação com a formação ética e de cidadania das crianças e jovens e nos faz enxergar com espantosa clareza, o óbvio, tudo aquilo com que convivemos e nos defrontamos diariamente e de que, por inúmeras razões, não nos apercebemos como deveríamos.

Proposta semelhante, mas com outro enfoque, é o livro do teólogo e escritor Leonardo Boff, Virtudes para um Outro Mundo Possível, Volume II: Convivência, Respeito e Tolerância (Vozes; 128 páginas; 2006), segunda parte de uma série que começou com Virtudes para um Outro Mundo Possível, Volume I: Hospitalidade; Direito E Deveres de Todos (Vozes; 200 páginas; 2005) e que deverá terminar com um terceiro volume, que falará sobre a cultura da paz. Usando os ensinamentos e a própria história da fé cristã e citando episódios interessantes como o das Irmãzinhas de Jesus que, nos anos 50, foram viver na combalida tribo dos tapirapé no Mato Grosso, salvando-os da extinção iminente, Boff criou uma obra que nos abre os olhos para elementos essenciais da vida humana, muitos dos quais negligenciados pela sociedade contemporânea, onde a convivência está cada vez mais prejudicada pelo individualismo e pela busca cega pelo êxito material e onde o respeito tornou-se artigo escasso nas relações sociais, movidas por interesses e pela frivolidade. Assim como Cortella, Boff escreve de maneira clara e seu texto, embora elaborado e carregado de significado, é de facílima compreensão. Gostei, especialmente, da parte em que ele discorre sobre a tolerância, mostrando-nos o seu significado e afirmando que, antes de mais nada, ela é uma exigência ética, que representa um direito que deve ser reconhecido a cada pessoa. Se queremos construir uma sociedade melhor e menos desumana, há que saber quais valores precisamos cultivar e Boff nos apresenta o caminho das pedras.

Recomendo, firmemente, a leitura de ambos os livros, inclusive como porta de entrada para quem, mais tarde, tiver interesse de alçar vôos mais altos no campo da filosofia. Quem sabe os leitores de Cortella e Boff não se aventurem, mais tarde, por obras de Platão, Aristóteles, Schopenhauer e Nietzsche? Afinal, quando a centelha da reflexão é acendida na mente de uma pessoa, dificilmente ela volta a se acomodar a um estado de quase inércia existencial. É, creio, um benfazejo caminho sem retorno.

Para ir além








Luis Eduardo Matta
Rio de Janeiro, 16/5/2006

 

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