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Segunda-feira, 15/5/2006
Romance policial tropical
Marília Almeida

Em meio a filmes brasileiros atualmente em cartaz no circuito nacional, como Arido Movie e Tapete Vermelho, um filme parece ganhar fôlego e respirar novos ares. Ao contrário dos citados, que exploram a já conhecida fórmula do cinema tupiniquim, que se constitui em retratar o ambiente nordestino e caipira e seus costumes, mais bem sucedida em Central do Brasil e Dois Filhos de Francisco, este faz coro com filmes anteriores que adaptaram obras literárias e a tornaram narrativas urbanas, como Dom, adaptado da obra de Machado de Assis.

Após Dois Perdidos em uma Noite Suja, filme que entrou e saiu do circuito sem grandes alardes, protagonizado por Débora Fallabella e Roberto Bomtempo, o diretor José Joffily segue com sua própria receita: adaptar obras que remetem ao submundo e soam extremamente modernas. Este é o caso de Dois Perdidos, obra-prima do dramaturgo Plínio Marcos, e, agora, Achados e Perdidos, romance policial de Luiz Alfredo García-Roza. Mas, apesar de ser uma receita única e inovadora, não fica livre de críticas. Na adaptação de Dois Perdidos, Joffily teve a concorrência de peso de uma adaptação anterior da obra para o cinema, datada de 1970 e dirigida por Braz Chediak (Navalha na Carne), extremamente fiel à obra e contundente. Além disso, a sua troca do personagem masculino da dupla de protagonistas por uma mulher não convenceu e dá, a uma história originalmente cheia de ódio entre dois operários que vivem juntos e são separados por um crime banal, um ar de romance mal resolvido. A troca de ambiente, de um Brasil decadente para a vida de imigrantes nos Estados Unidos, soa forçada e esvazia a crítica social original.

Agora, Joffily acerta mais ao trazer um escritor moderno que foi na contramão da literatura nacional, o que permitiu ao diretor ir também na contramão do cinema nacional. Luiz Alfredo García-Roza é um escritor best-seller carioca, com uma curiosa formação: psicanalista formado em psicologia e filosofia. Apesar de ainda ser um nome desconhecido, já vendeu 90 mil exemplares de seus romances policiais no país e os lançou nos Estados Unidos, Grécia, Espanha Portugal e França. Para ele, a literatura policial diz muito sobre morte e sexualidade, as questões mais intensas da filosofia e da psicanálise. Este gancho o permitiu se aproximar com mais desenvoltura deste tipo de literatura. Seu personagem principal, o delegado Espinosa, é uma espécie de Sherlock Holmes, de Conan Doyle, uma das inspirações do autor. Ele permeia todos os seus livros e, ao invés de um detetive glamouroso, é o titular da 12º DP de Copacabana e observador de uma estrutura corrompida, com a qual lida diariamente.

A exemplo de Dois Perdidos em Uma Noite Suja, o diretor e o roteirista (Paulo Halm) também fizeram alterações nos personagens. Acabaram por colocar no lugar de Espinosa um delegado já aposentado, mas mantiveram suas características básicas, como a humildade, lealdade e ética (mesmo que ceda a algumas corrupções, afinal, é humano) que o difere dos funcionários que servem à polícia. O filme é composto, basicamente, de um trio que constitui, de certo modo, um triângulo amoroso: além do delegado Vieira, vivido por Antonio Fagundes, estão a prostituta Magali, personagem de Zezé Polessa; e a jovem que segue os passos de Magali, Flor, que marca a estréia no cinema da modelo Juliana Knust. Vieira é impelido a descobrir o misterioso assassinato de Magali, com quem pretendia se casar, ao mesmo tempo em que é envolvido pelo reaparecimento de um passado que o pode condenar. O elenco experimentado, ao lado de uma estreante, dá o tom do clima do filme. Juliana se sai bem ao representar o cinismo de sua personagem, mas o papel é pesado para sua estréia. Ele envolve uma personagem-chave da trama, extremamente ambígua, o que por vezes a faz derrapar e confundir os espectadores.

O enredo do filme pode soar, aparentemente, um tanto previsível, mas esta leitura é errônea se notarmos que todos os personagens são ambíguos e nenhum se configura em um personagem raso, a exemplo de um assassino frio e calculista. Não há o lado do "bem" e o lado do "mal". Além do trio principal, o ex-policial e amigo de Vieira, que se torna um político corrupto, e a prostituta decadente tomada pelas drogas são pessoas que respiram o ar humano que a fonte onde o autor bebe, a psicanálise, explica. Isto acaba por manter a trama suspensa e ser eficaz em seu efeito de produzir uma sensação de revelação conforme se desenrola, indo do passado para o presente, voltando a este e, algumas vezes, assumindo tons confessionais e de memórias. E, realmente, o que vemos é mais uma história investigativa, permeada por sentimentos e emoções conflitantes, do que o lugar-comum da violência gratuita carioca, que o autor é veemente ao afirmar que não o inspira, mas serve apenas como pano de fundo para suas histórias.

Parece que, desta vez, o cinema brasileiro desponta para longe dos lugares comuns de onde tenta, atualmente, se livrar de diversas formas, inclusive incorporando, com sucesso, a linguagem teatral, em filmes como A Máquina. Parece que está conseguindo e, nesta busca, não perde suas características culturais. E não o poderia. Nenhum cinema pode.

Marília Almeida
São Paulo, 15/5/2006

 

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