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Quarta-feira, 31/5/2006
A crise dos novos autores
Jardel Dias Cavalcanti

Existem dois problemas que assolam a mente dos novos autores no que diz respeito à criação de novas e significativas obras literárias (ou mesmo de outras artes). Os dois monstros assustadores são: o problema da angústia da influência e a idéia ou necessidade de se criar algo novo.

Essa angústia que atinge a produção dos novos autores talvez seja real. Ter em mente autores tão potentes como Proust, Dostoiévski, Tolstoi, Kafka, Joyce, Flaubert, Rilke, Balzac, Thomas Mann, dentre outros, deve ser castrante para quem quer vir a ser escritor um dia. Ao menos se o novo autor tiver o mínimo de senso autocrítico (e se, ao menos, conhecer essa tradição, está claro). Como superar experiências artísticas tão significativas quanto a da tradição literária? Como superar mentes tão inteligentes, tão informadas dos sentimentos, idéias e problemas da existência social e estética de seu próprio tempo e que conseguiram transformar isso em verdadeiras obras de arte? Não foi isso o que fizeram nossos grandes mestres do passado?

Realmente não é para qualquer um encarar tarefa tão elevada. Afinal, quem hoje em dia está disposto a consagrar toda a sua existência ao mergulho cego num projeto de criação da obra de arte como da própria vida? É preciso ter fé na arte acima de qualquer coisa para se dar o próprio sangue por ela. E poucos nas atuais circunstâncias estão dispostos a tanto. Não foi (apenas) isso o que fizeram nossos gigantes do passado?

Uma coisa é querer ser famoso, rico, venerado pela sua própria arte, outra é ir ao encontro do desconhecido, por uma questão absolutamente existencial (da arte como necessidade vital para a própria existência), sem mediação de valores apenas circunstanciais, como o prestígio social tão sonhado por uma geração de narcísicos e apáticos boçais. Quando a busca pelo prestígio se torna mais importante que a criação, estamos diante da dupla face demoníaca da incompetência: a imitação (o que está na moda fazer?) e o prosaico (se minha vida é superficial, minha arte também o será). E em arte, como sabemos, a imitação e o prosaico são venenos sem cura.

O outro problema que mencionei é o da tentativa de superação das grandes obras do passado através da criação do novo. Sabemos que, nos anos 30, Ezra Pound impôs aos literatos de seu tempo um dos mais famosos imperativos da literatura moderna: a ordem de tornar novo. Trata-se da concepção de que as artes modernas têm a obrigação especial, o dever vanguardista, de ir à frente de sua época, dinamitando o passado e transformando a própria natureza da arte. A tábua rasa do passado foi lançada nas palavras de Tchekhov: "Há necessidade de novas formas, e, se não há como encontrá-las, melhor ficar sem nada". E também Nietzsche não deixou por menos: "Todo aquele que quiser ser criativo no bem e no mal deverá antes ser um aniquilador e destruidor de valores".

Falar é fácil. Depois de mentes que, sem sombra de dúvida, correspondiam a esses ditames, como Joyce, T.S. Eliot, Kafka e o próprio Ezra Pound, depois dessas mentes inventivas, o que sobrou? A genialidade parou nos anos 30? Pelo visto, sim. Afinal, arremedos de tudo isso não param de se colocar como se pertencessem a essa tradição do novo. Mas copiar uma tradição e/ou ruptura não seria apenas macaquear em regrinhas o que antes era genialidade e congelar o processo criador que deveria ser algo profundamente individual para ser inovador?

No Brasil, salvos dessa perversão estão, entre outros raros talentos, apenas Guimarães Rosa, Drummond, Clarice Lispector e Hilda Hilst. Mas... e depois dessas nobres almas?

O mesmo acontece nas artes plásticas. Uma coisa é rasgar a tela pela primeira vez, como fez Fontana, outra é ficar copiando esse gesto (essa arte?) insistentemente e imbecilmente apenas para não querer estar fora de moda (na cultura também existe o estar na moda ou fora dela). Uma coisa é colar uma cadeira em uma tela na Alemanha vanguardista dos anos 20, outra é repetir isso inconseqüentemente num país atrasado e vanguardeiro como o Brasil a partir dos anos 60 (e os artistas ainda querendo se passar como pioneiros de sei lá o quê).

Dito isso, e sendo um pouco radical (ser radical é ir à raiz do problema, como dizia o velho Marx) creio que estamos longe de poder apontar qualquer coisa relevante nos últimos tempos. Não que não existam artistas de alto calibre. Eles apenas, sugiro, não interessam ao gosto médio, menor e ralo de uma geração de leitores que não são tão bem informados da tradição. E as editoras e galerias precisam sobreviver e suprir essas inteligências anãs.

Será que nossos artistas estão realmente dispostos a serem artistas no sentido mais alto que esta palavra possa ter?

As palavras de Rilke, no seu livro Cartas a um Jovem Poeta, ressoam agora na minha mente para definir o que seria o artista. "Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse proibido escrever? Basta sentir que se poderia viver sem escrever para não mais se ter o direito de fazê-lo".

Não estaremos numa época tão superficial que os artistas também se tornaram superficiais? Afinal, qual a profundidade, a inteligência e a sensibilidade da mente de um jovem artista hoje? A arte já foi algum dia outra coisa e os artistas também. Havia um peso nas obras de arte que superavam seu peso material. Hoje parece que a literatura é leve, tão leve quanto seus poucos gramas em duzentas e tantas páginas.

Talvez estejamos diante de uma geração de artistas que apenas quer ver seu brilho refletido no espelho. E o que vão ver satisfeitos é a sua própria vaidade vazia. E o reflexo disso será também a sua própria arte.

E a arte sempre foi e é outra coisa. Nasce de outras ambições. Termino então com Rilke: "Uma obra de arte é boa quando nasceu por necessidade. Nesse caráter de origem está o seu critério - o único existente". Porque não tem sido assim, não temos tido nada de tão grande valor. Amém!

Jardel Dias Cavalcanti
Campinas, 31/5/2006

 

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