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Quinta-feira, 22/6/2006 Mané, Mané Guga Schultze Ele se movimentava pela linha lateral direita do campo como se não existisse ninguém ali, como se estivesse em outra dimensão e, na verdade, estava. Tinha essa capacidade natural de estar sempre décimos de segundo a frente de qualquer um, a explosão muscular extraordinária que, na época, nem tinha esse nome, era apenas magia. Corria livremente rente à linha branca que limitava o campo, levando com ele a zaga adversária que não conseguia sequer tocar a bola para escanteio, passando como um malabarista consumado no espaço de poucos centímetros entre as canelas dos manés - com letra minúscula - e a linha branca da lateral direita dos gramados. Na seqüência desse lance alguém entra na área, Didi, Vavá, não me lembro mais, e recebe o passe rasteiro, vindo da linha de fundo (qual jogador, hoje, recebe um passe assim?) e, na corrida, enche a rede adversária. Mané volta caminhando para o meio do campo, comemora timidamente o gol com os companheiros, toques de mão e tapas nas costas, olha pra trás, por sobre o ombro e sorri marotamente para o goleiro. Vi essa cena quando eu era menino, na casa - uma mansão - de um colega de sala cujo pai possuía um cinema particular. Quero me convencer, hoje, de que era um documentário do antigo Canal 100, mas não posso afirmar. Sei apenas que a cena não faz parte do filme Garrincha, a Alegria do Povo (de Joaquim Pedro de Andrade) e, na minha inconsciência de menino de oito ou nove anos de idade, jamais atinei em pesquisar o assunto. Lembro-me apenas que esse colega meu, menino rico e boa praça, me levou até sua casa para me mostrar o projetor de cinema "de verdade" e entramos na sala de projeção no momento em que o pai, sozinho, assistia. Eu, emérito perna-de-pau das nossas peladas de rua, me confrontei, na sala escura, com o deus do futebol e sua aparição na tela iluminada. A partir daí, de certa forma, desisti do futebol. Não só por saber que eu não era, nem seria (nem eu, nem mais ninguém) páreo para aquela demonstração de fluidez de movimento, de habilidade pura no ato de jogar bola, como também pelo fato de que aquela malícia, elevada ao estatuto de arte pelas dimensões da tela, registrada na sucessão dos fotogramas de um projetor qualquer, estaria ali, disponível como um maná para os famintos, os discípulos da malandragem, herdeiros da esquiva; nós, brasileiros em suma. Isso me assustou. O maná do Mané congelou meu estômago e eu não tenho mais estômago para discutir futebol. Há pouco tempo uma revista famosa no Brasil recebeu um número recorde de cartas quando levantou a questão de quem seria melhor jogador: o rei, Pelé, ou o príncipe etíope (tem cara de príncipe etíope) Ronaldinho Gaúcho. Entre as diversas opiniões houve aquelas que assinalavam o abismo entre as épocas, o futebol era assim, hoje é assado - não há dúvida de que hoje os jogadores são atletas, antes de mais nada - e a especulação não leva a lugar algum, como em quase toda discussão sobre futebol. Houve realmente um rei, que eu saiba, com seus cavaleiros, sua távola redonda, mas eu procuro ainda pelo mago da côrte. Com ele não havia barreiras em campo, não haveria Parreiras que o disciplinassem, não haveria, como nunca houve, esquemas táticos sendo que ele encarnava sua própria tática, solto no corredor estreito que demarcou como seu território exclusivo: o lado direito ao longo da linha que limita o campo adversário. Manuel Francisco dos Santos, o Garrincha, bi campeão mundial, 58-62, morreu, me parece, em 1983, joelhos detonados, pobre, barrigudo, inchado de pinga, uma penca de filhos e de dívidas. Foi o "Anjo das Pernas Tortas" de Vinícius de Morais, a Estrela Solitária de Ruy Castro. Levou com ele um tipo de magia que não existe mais. Nota do Editor Guga Schultze assina o blog Sic. Guga Schultze |
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