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Sexta-feira, 23/6/2006
Textos mortos vivos
Julio Daio Borges

Quando eu era mais jovem e não escrevia ainda, via autores reclamando de ter de "assumir" livros, e opiniões sobre eles (e dúvidas!), que não lhes diziam mais respeito - e achava aquilo estranho. Se o sujeito havia escrito o negócio, e publicado, por que agora, de repente, resolvia renegar? Deveria tomar mais cuidado antes de publicar, eu pensava.

Achava mais estranho ainda casos em que o livro era um sucesso estrondoso e o autor, ao contrário do que era de se esperar, até se envergonhava de si próprio. O episódio mais folclórico é o de J.D. Salinger, cujo sucesso de O Apanhador no Campo de Centeio lhe pareceu tão acintoso (para o seu gosto), que ele, Salinger, decidiu se resguardar para sempre dos holofotes. Há décadas não publica nada; nem aparece pras pessoas.

No Brasil, já vi a Lygia Fagundes Telles se arrependendo em público de um primeiro livro (de poemas?). Como se aos 80 anos, em cada palestra que ainda dá, tivesse de se justificar para a audiência por causa daquele arroubo... Existe um conto, ou uma crônica, do Luis Fernando Verissimo em que ele afirma que o pior sucesso é o "indesejado" (ou uma palavra similar). Algo como os best-sellers da Lya Luft, ou o best-seller (para ser mais exato), que, sem explicação aparente, emplacou como "auto-ajuda", embora ela tenha sido, a vida inteira, uma autora considerada "séria"... Ou ainda o Diogo Mainardi que, muito embora tenha investido seus "melhores anos" na literatura, ficou famoso mesmo como "polemista" da Veja.

Aqui, a perspectiva de uma carreira literária sólida é tão improvável (se o escritor não tiver outro trabalho), que autores se agarram a qualquer forma de sucesso, mesmo o mais deplorável... Um amigo jornalista - um dos poucos bem-sucedidos que eu conheço, com mais de 10 anos de BBC nas costas -, nas reuniões de fim de ano em família, às vezes ainda tem de ouvir da cunhada: "Por que você não lança um livro como o do Arnaldo Jabor?". E vai explicar pra ela que o Jabor não é jornalista; nem, muito menos, escritor... - talvez cineasta (ou foi).

Mas essa é outra história. O que eu queria dizer aqui é que entendo hoje melhor os autores que reclamam das mesmas perguntas, das mesmas reações da platéia, das interpretações de sempre... quando se trata de livros, ou textos, pelos quais eles não podem mais se responsabilizar (como antes puderam).

O maior problema da obra, dizia numa época o Polzonoff, é que você não pode controlar o que "a posteridade" vai falar. A interpretação (e o uso), principalmente no Brasil, é livre e descontrolado. Será que o Nélson Rodrigues aprovaria as inúmeras encenações que fazem de suas peças todos os anos? Será que o Guimarães Rosa atribuiria algum valor às efemérides que hoje se celebram em seu nome? Ou ambos teriam de dar "graças a Deus" por, no País do esquecimento, estarem sendo lembrados (do jeito que for)?

O Digestivo tem cinco anos, mas já colecionamos alguns casos de erro de interpretação. Lembro, bem no início, do Lisandro Gaertner perdendo a paciência com os Comentários - porque havia escrito um texto em que mencionava en passant o secretário de Estado dos EUA, Colin Powell. Os Comentaristas não quiseram nem saber: apesar das intervenções do próprio Lisandro no Fórum, insistiam em discutir a performance de Powell em uma entrevista da MTV... Os Comentários, ao que parece, são, por natureza, indomáveis. Outro dia li - e linquei no Blog - um estudo recente sobre o que a autora do paper chamava de "leitura esquizofrênica" - a que se faz na internet hoje... A gente insiste muito no diálogo, ou, no dizer do Cluetrain, na "conversação", mas sabe muito bem que o que predomina mesmo é o monólogo, ou o solilóquio, ou até o espetáculo solo, de pessoas que, pretensamente, se encontraram na Web para trocar idéias...

(Parece que estou cada vez mais longe do meu assunto, mas não estou, não.) Nos Estados Unidos - os franceses tentam, mas a nomenclatura vem toda de lá -, chamam o fenômeno dos textos que nunca morrem, graças aos Comentários, de "live posts" (por causa dos blogs). Aqui no site, é engraçado... O Juliano Maesano escreveu um texto em 2001 sobre a série Anos Incríveis, mais na base da diversão, mas que não passa uma semana sequer sem receber Comentários. A Clarissa Kuschnir, que teve uma passagem meio relâmpago pelo Digestivo Cultural, outro dia pediu para corrigir dois erros num texto seu de 2002, sobre o filme Dirty Dancing, porque, até hoje (2006), as pessoas não paravam de reclamar... E o Fabio Danesi Rossi deve ter se arrependido de brincar dizendo que, na sua Coluna de 2002, a Mariana Ximenes estava nua, bem na época de O Invasor... - pois, volta e meia, encontro Comentaristas sôfregos: "Pô, meu, vê se libera aí aquelas fotos!".

Do mesmo jeito, o Marcelo Miranda tem de aturar as defesas apaixonadas que o fãs do "Michael" (Jackson) fazem toda vez que visitam a página onde ele resenhou a biografia do cantor. Antes, era o Arcano9 que recebia manifestações de solidariedade porque uma vez, até como exercício de estilo, decidiu colocar em dúvida a imagem de "Jacko" promovida pela mídia... E, falando de novo em Salinger e O Apanhador, a republicação de um texto do Nemo Nox aqui no Digestivo é mais acessada que o original sobre o mesmo tema... (E dá-lhe interpretações adolescentes nos Comentários sobre a obra.) O mesmo Polzonoff teve de agüentar, por uns bons anos, a sanha dos seguidores de Olavo de Carvalho porque, em 2003, chamou-o de "roqueiro" e insinuou que o "filósofo" admirava mais os meninos do Los Hermanos do que sua própria legião de seguidores em forma de pseudônimo...

Aliás, o Alexandre Soares Silva quando cansava de discutir lá nos Wunderblogs, lincava pra cá, para um texto seu de 2002: "Polêmicas" - em que exemplificava como até Oscar Wilde, na era da internet, estaria condenado a erros de interpretação. O texto é um de seus maiores hits; e eu arrisco dizer que é um dos maiores hits da internet brasileira sobre o assunto... A ponto de, na última vez, o Alexandre, cansado de lincar pra cá, tê-lo reproduzido na íntegra no seu blog. Pra quê? Uma Colaboradora do Digestivo me repassou por e-mail como se fosse novidade... E, pior de tudo, o Daniel Piza - inspirador e Leitor do Digestivo Cultural de primeira água - reproduziu um trecho na sua coluna como se fosse, também, novidade.

Eu, pelo meu lado, tive uma certa canseira com os bloggers que, durante anos, decidiram considerar minha "primeira visão" dos blogs como definitiva. Tive de escrever outras, para esclarecer e ampliar a compreensão da "minha própria visão" (ou daquela que as pessoas me atribuíam). E o Lula, então? Semana passada, um Parceiro novo do Digestivo Cultural veio me xingar, naquele texto sobre o Lula de 2002, argumentando que, apesar de tudo o que eu disse, o País havia crescido, a economia estava bem, o Presidente iria entregar um Brasil melhor etc. A esse, fiz questão de responder: "É tudo culpa da herança maldita (de PSDB e de FHC)!". E ainda tasquei um (auto-)Comentário, onde Carlos Vereza, no Jô Soares - via YouTube -, tripudia em cima de Lula, em 2006, muito mais do que eu tripudiei em 2002.

Vai ver que é por isso que algumas pessoas brigam tanto comigo quando profiro (do verbo "proferir") algum juízo desfavorável sobre elas ou sobre suas obras... Possivelmente com medo de que, com o crescimento da internet (e do Digestivo, modéstia à parte), aquilo fique entalhado para sempre em mármore. Ora, mas os Comentários também ficarão! E os xingos, e os erros de interpretação, e todas as barbaridades que - por mais que a gente apague - ficarão registradas no Internet Archive ou no cache do Google... Ainda não aconteceu de nenhum Colaborador do Digestivo vir a falecer, mas, quando isso acontecer (espero que seja só no próximo século), lamentaremos informar à viúva, e aos descendentes do dito cujo, que eles continuarão a receber Comentários dos Leitores do Digestivo Cultural. Por toda a eternidade...

Julio Daio Borges
São Paulo, 23/6/2006

 

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