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Quarta-feira, 5/7/2006
Ney Matogrosso: ótimo intérprete e grande showman
Rafael Fernandes

Ney Matogrosso é um dos grandes intérpretes do Brasil. Tem seu espaço na mídia, mas talvez não seja tão comentado e celebrado quanto outros intérpretes: não tem a voz sublime de Milton, não tem a "mítica" de João Gilberto; não compõe, talvez por isso não tenha a unanimidade e "imunidade" de Chico, não tem "volúpia midiática" como Caetano - pronto para aparecer a qualquer hora, não é Ministro. Mas talvez seja o único intérprete no Brasil que consiga unir um bom repertório - sempre escolhido a dedo, voz poderosa, canto seguro e alta carga de performance - visceral e provocativa - em seus shows, muitas vezes "jogando para a torcida" e aproveitando-se dela. Ney Matogrosso é um showman.

Nascido Ney de Souza Pereira em 1º de agosto de 1941 no Mato Grosso do Sul despontou como integrante do grupo Secos e Molhados, que teve trajetória meteórica - lançou apenas dois discos, em 1973 e 1974. Hoje é considerada uma banda cult; tinha como característica composições pop certeiras com altas doses de humor e ingenuidade, com performances ao vivo retumbantes, nas quais seus integrantes se apresentavam com máscaras e fantasias. Ney era o grande destaque com suas atuações lascivas e provocativas. Se hoje esses ingredientes são até clichês na música pop, não eram no Brasil do início dos anos 70, comandado por uma Ditadura e ainda sob o olhar de ferro do AI-5. Imagine a cara do Médici ao ver uma rebolada do Ney Matogrosso.

Por toda sua carreira Ney lançou discos interessantíssimos, tanto com o Secos e Molhados quanto em carreira solo - seja com Bandido de 1976, que já colocava no mesmo balaio Chico Buarque ("Mulheres de Atenas") e Odair José ("Uma canção de Amor") (muito antes desse recente culto ao compositor brega), ou ainda em Ney Matogrosso (1981) - disco com arranjos de César Camargo Mariano, no qual juntou novamente Chico Buarque com Rita Lee, Moraes Moreira e Raul Seixas. Sempre transitou com facilidade entre o pop e a MPB (ô sigla difícil!). Quando se aproximou desta última, em geral teve resultados excelentes, como no fantástico Pescador de Pérolas, de 1986 acompanhado de uma banda composta pelos fora de série Arthur Moreira Lima (piano), Paulo Moura (sax alto e soprano), Raphael Rabello (violão) e Chacal (percussão); ou ainda no antológico À Flor da Pele, de 1990, em duo com Raphael Rabello e, mais recente, em Ney Matogrosso Interpreta Cartola. Em 2004 lançou um dos melhores discos dos últimos anos, Vagabundo, na companhia de Pedro Luís e a Parede. Em 2005 lançou Canto em Qualquer Canto - gravação ao vivo feita no SESC Pinheiros, em São Paulo. Recentemente, encerrou a turnê do disco no Tom Brasil Nações Unidas. O disco é ótimo. Na época de seu lançamento Ney disse que no dia da gravação sua voz não estava no seu melhor e fez reparos em estúdio; ainda assim, reitere-se, o disco é ótimo. Porém, ser um espectador in loco dá outra dimensão ao repertório: o show é pesado, intenso, corporal - ainda que o formato seja mais intimista e só Ney fique de pé - e provocador.

O cantor entrou no palco - com uma camisa brilhante aberta mostrando o peito - sob uma ovação e os costumeiros gritos de "gostoso", "tesão" e afins. No palco, da esquerda para a direita (na visão do público) estavam: Ricardo Silveira (violão e guitarra), mais responsável pela parte melódica nos arranjos; Marcello Gonçalves (violão de 7 cordas) representando o "baixo" nessa formação, fazendo contrapontos graves; Zé Paulo Becker (violão e viola caipira) e Pedro Jóia (violão e alaúde), que foram responsáveis pela parte mais rítmica e harmônica dos arranjos - e todos tiveram espaços para seus solos durante as músicas. No cenário, apenas luzes discretas e uma grande tela ao fundo, que alternava cores e projeções de luz, elegantemente. O que foi visto permeando todo o show: um cantor com sex appeal provocador e que chama a atenção por sua exibição corporal e mesmo nos solos dos músicos ele é o centro das atenções. Mas não é só isso. Há a sua voz, seu canto que tem humor e une vigor e sutileza com destreza.

O show se iniciou como no disco, com a bela "Canto em Qualquer Canto" (Itamar Assumpção e Ná Ozzetti) que pode resumir um pouco o que é Ney ao vivo: "Vim cantar sobre essa terra/ (...) / Trago facão, paixão crua e bons rocks no arquivo/ (...) / Gorjearei pela terra / Para dar e ter alívio/ Gorjeando eu fico nu/ Entre o choro e o riso/ Caso a bela com a fera/ Canto porque é preciso/ (...)/ Pra não perder o juízo"; as três músicas seguintes foram próximas à seqüência do disco - com exceção de "Ardente" (Joyce), que não apareceu no show: a ótima e divertida versão de "Amendoim Torradinho" (Henrique Beltrão); "Bamboleô" (André Filho) - o primeiro "arrasa quarteirão" da noite para o público, que delirou com a performance e "Uma Canção Por Acaso" - bela canção de Pedro Jóia e Tiago Torres da Silva - um dos grandes destaques musicais da noite, com uma bela amostra da capacidade criativa dos músicos: o violão com acento espanhol de Pedro Jóia dialogando com o violão de Zé Paulo Becker; Marcello Gonçalves executando violão de 7 cordas com condução remetendo à escola do choro e Ricardo Silveira fazendo uso de técnica de slide (que é aquele "tubinho" de metal ou vidro que fica no dedo do guitarrista) para adicionar um colorido melódico ao instrumental.

Em seguida, um choro foi executado - a primeira música incluída na apresentação que não está no CD: "Último Desejo", de Noel Rosa, que teve como introdução breve e belo solo Ricardo Silveira, que logo em seguida virou diálogo melódico com Ney. Em "Dos Cruces" (Carmelo Larrea) novamente apareceu um forte acento flamenco - que permeou boa parte do espetáculo, diga-se, resultado da presença de Pedro Jóia, especialista no estilo, que brindou o público com execução vigorosa e precisa de seu violão por todo o show. O repertório seguiu com "Retrato Marrom" (Rodger Rogério/ Fausto Nilo) - que mostrou toda exuberância vocal de Ney - e "Oriente" (Gilberto Gil) - com longa passagem instrumental que proporcionou solos a todos os músicos e mostrou interessante combinação entre alaúde e viola caipira.

Em seguida, foram tocadas "Duas Nuvens" (Pedro Jóia e Tiago Torres da Silva) e "Bandoleiro" (Luli e Lucina), que foi incendiária: o Tom Brasil quase veio abaixo após sua execução. A partir deste momento, o público - que já estava na mão do cantor - foi completamente conquistado. A próxima foi "O Doce e o Amargo" (João Ricardo e Paulinho Mendonça) - um clássico do Secos e Molhados. Em "Lábios de Mel", (Waldir Rocha) Ney Matogrosso deu uma apimentada nessa música de amor de letra boba, proporcionando interessante contraponto entre a ingenuidade da letra e a sensualidade da interpretação. Finalizando o show, vieram boas versões de "Ela e Eu" (Caetano Veloso) e "Tanto Amar" (Chico Buarque). "Já Te Falei" (Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown, Marisa Monte e Dadi Carvalho) - a última antes do bis - é uma canção "tribalista" boba, infantil, quase de "auto-ajuda" e foi talvez a mais fraca do show, ainda mais quando aproximada de músicas de Chico e Caetano; nem o instrumental - caprichado em todas as músicas - se salvou. O bis apresentado foi escolhido para agradar o público e começou com "Poema" (Cazuza e Frejat). Depois, vieram mais dois clássicos do Secos e Molhados: "Rosas de Hiroshima" (Gerson Conrad e Vinicius de Moraes) - com arranjo que ajudou a canção, ressaltando sua delicadeza e simplicidade e "Fala" (João Ricardo e Luli), que encerrou a apresentação deixando o público extasiado e mais do que satisfeito.

Ney Matogrosso não se fixa em standards nem nos mesmos compositores - varia o clássico com o novo, o conhecido com o desconhecido. Com esse show provou mais uma vez que tem a capacidade - como todo o grande intérprete - de passear por diferentes correntes musicais ao mesmo tempo em que toma para si as canções, aplicando a elas altas doses da sua própria personalidade.

Rafael Fernandes
São Paulo, 5/7/2006

 

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