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Terça-feira, 4/7/2006
A massa e os especialistas juntos no mesmo patamar
Marília Almeida

Qual o segredo do Google e Linux, um dos maiores sucessos da Era da Internet? Ambos são baseados na inteligência coletiva. O maior portal de busca da web consegue encontrar justamente a página que procuramos em apenas alguns segundos devido a um mecanismo, o algoritmo Pagerank. Ele permite ao maior portal de busca mundial hierarquizar suas páginas pelo número de links que levam para elas em todas as páginas de seu banco de dados. Em resumo, o Google acredita que as páginas mais relevantes estão diretamente relacionadas à popularidade. Em outras palavras, ele é guiado pela sabedoria popular. E funciona.

A mesma coisa acontece com o sistema operacional Linux. Criado pelo hacker finlandês Linus Torvalds, em 1991, foi disseminado livremente pela web por seu criador, através da divulgação de seu código fonte. Linus apenas pediu a quem o utilizasse que mandasse soluções de como melhorá-lo, o que permitiu seu constante aperfeiçoamento por programadores de todo o mundo. Até que o sistema se firmou como o maior desafio isolado à gigante Microsoft.

Estes dois exemplos confirmam a tese do jornalista estadunidense James Surowiecki, defendida em seu livro A sabedoria das multidões (Record, 2006, 376 págs.). O livro é a reunião de artigos publicados na imprensa nos quais buscou explicar o funcionamento do mercado. Colunista da revista semanal New Yorker, colaborador de jornais como The New York Times e The Wall Street Journal, James é editor na área de negócios. Para ele, um grupo pode ser tão inteligente quanto os melhores intelectuais por tomar decisões mais acuradas, baseadas nos conceitos de independência, diversidade e num tipo de descentralização que não significa necessariamente anarquia e que possui, sim, uma organização.

Em meio à crescente valorização de CEOs, a figura do principal executivo em companhias mundiais, o mercado busca pessoas altamente especializadas, o que faz com que os argumentos de James soem como um tiro na nuca. O autor é enfático ao afirmar que a busca pelas pessoas mais inteligentes pode significar perda de tempo e dinheiro. E que especialistas isolados tendem a ter maior dificuldade para tomar decisões e prever mudanças. Para James, um grupo que esteja de acordo com os três conceitos citados pode ser mais eficiente. Esta idéia está de acordo com o pensamento de Adam Smith, filósofo escocês formulador da teoria econômica, para o qual a especialização deve ser estimulada e alimentada pela descentralização.

Para ter uma idéia concreta desta teoria, lembremos do nosso game show tupiniquim Show do Milhão, apresentado no SBT por Sílvio Santos. Relacionando-o com o programa original estadunidense Who wants to be a milionaire?, é comprovado que a "ajuda dos universitários" é mais eficiente que a de um único especialista. James demonstra que, no programa americano, enquanto o especialista escolhido pelo competidor acertou 65% das vezes as questões que lhe foram dirigidas, o público heterogêneo escolhido a esmo, os nossos "universitários", acertaram em 91% das vezes.

Ao expor essa tese, James se confronta com pensadores de peso como o filósofo Friedrich Nietzsche, para quem "a loucura é uma exceção nos indivíduos, mas regra nos grupos". O escritor francês Gustave Le Bon, autor de The Crowd - A study of a popular mind, chegou a afirmar que "nas massas é estupidez e não bom senso que se acumulam".

Mas, deixemos claro. O autor não é, definitivamente, um masoquista. Ele não desafia o senso comum e conceitos tão arraigados mundialmente se não tivesse embasamento para isto. Primeiramente, seu objetivo é indicar, e o faz por dezenas de experiências, de inúmeros cientistas de variadas épocas; para a importância de se reconhecer o valor da inteligência coletiva e que ela pode, contribuir, especialmente, com a economia e os negócios.

James ainda desconstrói e coloca em minúcias as exceções à sua tese, mostrando que, sob determinadas circunstâncias, como grandes revoltas e bolhas do mercado, estes grupos podem agir de maneira irracional e, conseqüentemente, não de modo eficiente como era presumido. Às vezes, seus argumentos são fatalistas e generalistas, quando o autor afirma que "é assim que o mundo funciona". Mas James nunca deixa de dar insights ao leitor e pontuar possíveis interferências no que defende bem. A sabedoria coletiva tem a necessidade de algumas regras e pode cair em armadilhas como muita comunicação entre seus integrantes e, logicamente, a margem de desequilíbrio que pode haver conforme o número de participantes que a compõe.

É preciso ter clara qual a definição que James dá a "massa". Ao se referir a um grupo, o autor pode falar tanto de platéias de games shows como de grandes empresas, passando por diversos tipos de apostadores. A primeira parte do livro é eminentemente teórica, mas repleta de exemplos práticos, que se constituem em estudos fragmentados em diversas áreas do conhecimento, perpetrados por cientistas e economistas. Já a segunda parte apresenta estudos de caso, incluindo o acidente do Columbia, que demonstram formas diferentes de organizar pessoas em torno de um objetivo comum.

James introduz sua obra com uma experiência do cientista britânico Francis Galton, famoso por seu trabalho em estatística e na ciência da hereditariedade. Em uma feira rural em 1906, o cientista resolveu executar uma tarefa aparentemente simples: avaliar o competidor médio. Para isso, eles tinham que responder quanto pesaria um boi depois de abatido e esfolado. De 737 apostas, Francis tirou uma média surpreendentemente próxima à real: 542,9 kg. O peso real do boi seria 543,4 kg. Há uma série de experiências como essa na obra, que vão desde contar quantas jujubas há em um pote, passando por situações inusitadas como furar filas, ou observar a coordenação de pedestres nas calçadas. Todas instigam e desafiam nossos pré-conceitos.

Há, porém, experiências mais influentes, lucrativas e úteis que exemplificam a sabedoria coletiva. Elas se concentram nos mercados de ações e apostas. James lembra da explosão do ônibus espacial Challenger, em 1986, que fez com que as ações da Thiokol, empresa que construiu os anéis de vedação do foguete, caíssem impressionantes 12% em curto período de tempo, como se fosse rapidamente julgada por um mercado atento, que, foi comprovado, não possuía informações mais privilegiadas que a imprensa. Esta suspeita se confirmou após seis meses, quando foi comprovado que os anéis da Thiokol apresentaram falhas que causaram a explosão. James explica que a média de opiniões do público elimina os erros, mas lembra que, para que este grupo acerte em sua previsão, deve haver um mínimo de informação para que isto aconteça.

Além do mercado de ações, James demonstra que o de apostas oferece raciocínio similar e até mesmo programa seus lucros com base nesta sabedoria. Mas o autor também mostra projetos inovadores que embasam sua tese e podem até mesmo mudar os rumos estratégicos de uma eleição. Um exemplo é o Iowa Eletronic Market (IEM). Criado em 1988 pela Faculdade de Administração da Universidade de Iowa, prevê o resultado de eleições, com uma estrutura bem menor que um instituto de pesquisas como o Gallup. A novidade é que ele pode ser mais eficiente e produzir um novo mercado. Aberto a todas as pessoas que queiram participar, ele permite a compra e venda de contratos futuros, baseado em opiniões individuais sobre qual candidato terá o melhor desempenho. Mas, como tudo que envolve a sabedoria coletiva, até hoje é subestimado.

Porém, nem tudo são flores quando falamos de consciência coletiva. Este caminho de formação de um grupo ideal proposto por James resvala em uma série de armadilhas, que podem se tornar benéficas se aprendermos a lidar com elas ou serem extremamente dúbias em algumas situações. Uma delas é o conceito de imitação ou cascata de informações, que nada mais é do que a tendência humana de imitar o grupo no qual está inserido. Um exemplo que o autor nos dá é a invasão dos Estados Unidos à Baía dos Porcos, em Cuba. Ela foi perpetrada por um grupo homogêneo, que pode incorrer em decisões erradas mais facilmente do que o oposto. Este conceito é complicado pelas convenções sociais, que não permitem que o grupo pense diferentemente e, por conseguinte, possa tomar uma decisão mais acurada.

Mas James torna opiniões aparentemente simplistas em análises mais complexas justamente quando revela esta dubiedade, inerente do comportamento humano. Um exemplo é a tendência das pessoas serem demasiadamente autoconfiantes e, conseqüentemente, terem grandes chances de tomarem decisões erradas. Porém, elas podem, ao mesmo tempo, serem cautelosas e não entrarem em uma cascata de informação. A possibilidade de que entrem neste ciclo varia conforme as decisões lhe são mais importantes e é mais difícil de acontecer com relação a moda e produtos culturais.

James explica e reconhece que há três tipos de problemas que a sabedoria coletiva pode resolver: cognitivos, de coordenação e cooperação. Cognitivos são os mais facilmente utilizados por ela, pois consiste em prever medidas futuras e fenômenos externos e isolados, onde se tira uma média e se obtém a sabedoria do grupo, como demonstrado na experiência que adivinhava o peso do boi. Já nos de coordenação os integrantes do grupo têm que prever suas próprias ações e as dos outros, a exemplo de tomar uma decisão de ir ou não a um bar, prevendo o que pode estar acontecendo nele. Nos de cooperação, os integrantes, ao pensarem em seus interesses pessoais, acabam por ajudar uns aos outros, com base no princípio de sociabilidade e de acordo com sua cultura.

O autor, por fim, não dá receitas prontas e nos deixa com uma série de perguntas intrigantes, após passar pelos mais diversos temas, como cultura popular, psicologia, biologia e ciência política. Por que a CIA, uma das maiores redes de informação do mundo, não conseguiu evitar ataques terroristas como o 11 de Setembro? Por que o cinema não cobra os ingressos de seu filme de acordo com seu valor comercial e tempo de bilheteria, de acordo com a lei da oferta e da procura? Por que os gerentes de fundos mútuos, que são pagos para se diferenciarem de seus concorrentes, incorrem muitas vezes nos mesmos erros, baseados nas mesmas estratégias?

James atinge o ápice de sua tese quando se depara com a teoria do livre mercado. E nos deixa mais uma pergunta: é possível que esta sabedoria coletiva seja implementada no atual sistema econômico e político capitalista? O autor começa por proclamar a franqueza inerente aos negócios trazida pelo capitalismo, mas se torna vago ao falar da corrupção das entidades do sistema, como qualquer um se tornaria. É realmente uma questão difícil quando a coletividade também significa aproveitamento e lucros desmedidos, onde um integrante de um grupo, tomado pelo ceticismo, pode imitar a desonestidade de outros. É, em conclusão, um círculo vicioso difícil de se resolver e equacionar.

Mas há alguns caminhos expostos por James que levam, inevitavelmente, a tomadas de decisão melhores nos mais diversos âmbitos da sociedade. Para o autor, a internet é o sistema mais descentralizado do mundo. Sendo assim, permite que a sabedoria coletiva seja mais bem utilizada, a exemplo dos dois casos já citados no começo deste texto. Ele cita Howard Rheingold, um dos papas das comunidades virtuais, que acredita que o Smart Mobs, tecnologia celular, permite uma maior coordenação de ações entre os integrantes de um grupo. Talvez a globalização digital se configure como o melhor caminho, senão o mais viável.

A tese de James não serve apenas para os Estados Unidos, apesar do livro estar focado em fatos do país. Muitos dos elementos expostos pelo autor são universais. E é importante separar nesta discussão o conceito de sabedoria coletiva da convencional. A sabedoria coletiva é mais eterna e profunda. Como o autor bem traduz, ela difere uma sociedade de um monte de pessoas vivendo juntas.

Para ir além





Marília Almeida
São Paulo, 4/7/2006

 

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