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Quarta-feira, 5/9/2001
Um repórter a mil calorias por dia*
Paulo Polzonoff Jr

Yara Mitsuishi

O sonho de nove em cada dez pessoas que têm um ou dois quilinhos além do "peso ideal" é freqüentar um spa por uma semana e voltar à rotina em plena forma, para ser admirado por todos, em casa e no escritório. A rigor, um spa é um lugar idealizado como um pequeno paraíso terrestre, onde a gordura é barrada por vigilantes arcanjos da balança. As paisagens bucólicas destes lugares são um convite à perda de lipídios. Vaquinhas plácidas e um horizonte marcado por colinas pontuadas por araucárias compõem o visual de relaxamento, que na verdade esconde um ritual espartano.

Pelo menos é assim na Clínica Lapinha, um spa que fica na região metropolitana de Curitiba e que é freqüentado sobretudo por paulistas com ou sem nomes conhecidos, mas com bastante dinheiro no bolso. Gente como Bóris Casoy e Marta Suplicy já passaram pelos aconchegantes quartos da Lapinha, a fim de se tornarem "pessoas diferentes", como reza o discurso decorado deste tipo de lugar. Estive neste templo da "vida saudável", da "qualidade de vida", e o que pude constatar está descrito no texto que se segue.

1. Os personagens

Ninguém vai para um spa obrigado. A maioria que ali está o fez por vontade própria, por se olhar no espelho e não gostar do próprio corpo. Ou por recomendação médica diante do perigo de infarto iminente. Isto explica porque ninguém reclama das dietas rígidas e dos horários que muitas vezes lembram os de um quartel. Só a disciplina levará à glória, como diria um destes livros de auto-ajuda ou manuais da Escola Superior de Guerra. Os freqüentadores de spa são, em geral, executivos ou senhoras que querem se livrar do estresse acumulado pela labuta diária. As conversas giram em torno de assuntos importantes, como o Rolex que se vendeu por um preço abaixo do esperado, e por uma ou outra piadinha acerca de um virtual Big Mac.

Nenhuma censura quanto a isso, claro. A dádiva do dinheiro foi feita para ser gasta do modo que se quiser. Cabe-nos, aqui, apenas um relato breve do que são alguns dias neste antro do bem-viver, ao lado de tão interessantes personagens, no cenário campestre da cidade da Lapa.

2. Chegada

O atendimento é de primeira. Sou recepcionado por um belo sorriso em uma boca fina, que me indica o quarto e rapidamente oferece-se para me acordar amanhã às 6 horas, ao que concordo imediatamente, sem nem termos tempo para pensar. Ela explica o funcionamento do spa, sem muito entusiasmo mas também sem o tédio que é característico nos atendentes de hotel. Os hóspedes dormem cedo, às 21h30. Nenhum barulho é permitido depois deste horário. Nada mal para as pessoas que, na vida agitada das cidades, estão acostumadas a dormirem depois da meia-noite. Meio abobalhado, pergunto se posso usar o celular. Ela diz que sim e só então descubro que o aparelho está fora da área de serviço.

3. Madrugueiro

O método de acordar os hóspedes é simples mas eficaz: batidas na porta e o anúncio "Bom dia, são 6 horas". É hora de levantar para a caminhada, mas, como descobri mais tarde (tarde demais) só levanta a este horário quem quer. Quanto chego ao lobby, percebo que todos ali querem sentir o frescor do nascer do dia. São comuns entre os hóspedes lugares-comuns como estes, que exaltam os valores do campo. Como a maioria dos que ali estão mora em São Paulo (apesar de ficar a cerca de 100 quilômetros de Curitiba, a maior parte da clientela do spa da Lapinha é de paulistanos), não é difícil imaginar por quê. A injeção de oxigênio com baixo teor de poluição parece evocar nas pessoas uma genuína vocação para as atividades campestres. Todos alongam (alguns desajeitadamente) e vamos andar.

4. Cifras

Começamos a andar. Eu me junto a uma turma de executivos de São Paulo. Um deles é empresário do setor têxtil. O outro é um alto funcionário do governo de São Paulo. Chamemo-los de Horácio e Augusto. São amigos. Horácio está no spa apenas para descansar. Já Augusto está ali por recomendação médica. Ambos aderiram à Semana do Executivo, com uma série de palestras e atividades voltadas para este público específico. Mesmo andando numa estrada de chão, cercados por plantação de cevada, vacas ruminando o tempo e insistentes sabiás, mesmo assim falam de negócios. Perguntam-me coisas a respeito da política no Paraná; falam do "apagão", do quanto gastaram para diminuir seus respectivos consumos; e cifras, muitas cifras. Os homens só pensam em cifras.

Hora de dar meia-volta. Aproximo-me de uma mulher, Alzira, assessora de imprensa. E eu, para o meu desespero - e, acho, o dela - apresento-me como jornalista também. E então fico sabendo que ela trabalha assim e assado, que gosta de São Paulo, que acha que eu deveria ir para lá para alavancar minha carreira. Concordo com ela plenamente. Já estamos quase chegando ao spa novamente quando penso se devo ou não perguntar se ela está ali para perder peso ou somente para descansar. A silhueta dela, muito bem esculpida, dispensa minha pergunta.

5. Desjejum

Não se trata de preciosismo usar o termo desjejum ao invés de café-da-manhã para o que nos foi servido neste meu primeiro dia no spa. Depois de levantar às seis da manhã e andar uns cinco ou mais quilômetros, era de se esperar que estivesse faminto. Cafés-da-manhã de hotéis são famosos pela fartura. E é isso que imagino.

Engano-me, obviamente. O café-da-manhã é algo desalentador. Em pensar que aquilo de que disponho tem de durar até o meio-dia. Um prato com cerca de 150 gramas de granola com frutas, um copo de iogurte natural, duas exíguas fatias de pão preto, um naquinho de queijo (ricota?) e três opções de bebidas: chá de camomila, chá de alguma outra erva e leite. Como com avidez a granola e as fatias de pão, que besunto com o máximo de mel que consigo. Bebo o leite e imediatamente me sinto culpado, porque descubro que, se esta é a refeição farta, o que é, então, a refeição SS.

Explico: os hóspedes mais afoitos em perder peso denominam de SS a dieta de 420 calorias, que promete um resultado rápido de desintoxicação e, claro, o que interessa: perda de peso. SS quer dizer suco & sopa. É só disso que se alimentam os mais corajosos. Maria Helena, uma discreta e alegre gordinha sentada ao meu lado, diz que o nome verdadeiro da dieta é SSS (suco, sopa e sobras). É que são poucos os que conseguem sobreviver com tão pouco; logo, pegam um pouquinho de cada coisa que os demais hóspedes deixam na mesa.

Claro que isso é proibido.

6. Hidroginástica

Depois de caminhar, tomar um café da manhã mínimo e colocar o calção de banho, entro na piscina para a sessão de hidroginástica. Uma hora exaustiva de movimentos dispensáveis dentro d'água, ao som de bossa-nova (João Gilberto, para ser mais exato). Todos riem. Como são felizes as pessoas na hidroginástica. A sessão dura uma longa hora e termina às 10h30. Só consigo pensar uma coisa: falta uma hora e meia para o almoço.

7. O almoço

Durante a hora e meia que antecedeu o almoço, tirei sangue para exames e me submeti a exames médicos que me permitiam massagens pelo corpo todo. Só conseguia, contudo, pensar em almoço, almoço, almoço. Foi neste clima que conheci um senhor que me falou das maravilhas que era o almoço do spa para quem não estava lá para fazer dieta, o meu caso.

O almoço é anunciado a todos por um gongo. Os famintos correm, sem muita dissimulação, para o refeitório. Cada um tem sua própria mesa e a minha é a de número 12. Quando me aproximo dela, vejo meu prato: verde, verde, verde e mais verde. Com um pouquinho de caroteno, digo, cenoura, por cima.

É a tão temível salada.

Que vem acompanhada de uma porção escassa de arroz integral (acho que sem sal), almôndegas (de soja?) e vagens cozidas. O pior é que isso tem de durar até o jantar.

8. A tarde

Com fome e cansado, o negócio é tentar ler. Só que a fome não deixa que eu me concentre. Então eu durmo até as 5 horas, quando desço ao lobby para investigar a vida das pessoas que freqüentam um spa. Há um grupo lendo numa espécie de jardim de inverno. Um lê Noites Tropicais, de Nelson Motta. Outro um livro do Moacyr Scliar, que reconheci pela capa. É quando começam a conversar, alheios a minha presença. Eu me escondo atrás de um grosso volume de Fernando Sabino. Reproduzo aqui alguns trechos da conversa:

- Vendi bem o meu Rolex. Ele valia $3,300 e eu vendi por $2,500.

- Mas fez mau negócio no lustre.

- É. O lustre valia $5 mil e eu vendi pela metade.

- Achei melhor pensar no jantar, que prometia.

9. O jantar

O jantar consistia em uma rala sopa verde.

10. A noite

Depois de me "fartar" da sopa verde, fui para o quarto. Não havia muito o que fazer se não rezar para que a noite passasse rápida e o café da manhã chegasse mais rápido ainda. Rezar para que a caminhada fosse rápida e indolor (a bolha no pé agradeceria).

A noite, entretanto, mostrou-se dolorosa para quem, como eu, está acostumado a um jantar reforçado e um lanchinho lá pelas 2 horas da madrugada. Dor-de-cabeça, fome, fome, mais fome e pensamentos obscenos envolvendo uma xícara de café. Este foi meu pesadelo. A hora não passava. Foi quando finalmente escutei as batidas na porta me chamando para a caminhada. Ah, as doces (com o perdão do pecado capital) batidas na porta me chamando para a caminhada. Tomei um banho rápido e saí correndo. Logo eu era mais um entusiasmado.

11. O entusiasmo

O entusiasmo tem uma explicação plausível. Não era fruto de alucinação causada pela fome. É que, no dia anterior, fiquei sabendo de um estratagema comum entre os hóspedes do spa: esticar a caminhada até um lugar onde tenha uma mísera xícara de café à venda.

Não achei tal lugar. O café ficaria para o dia seguinte, quando voltaria para Curitiba, para a rotina normal de, segundo um dos médicos do local, "destruição do meu aparelho digestivo", que ele considera "tão importante quanto o neurológico".

12. Momentos finais

Os momentos finais no spa foram os melhores. Porque finais. As recepcionistas continuaram a me tratar muito bem - não posso reclamar do atendimento. No refeitório fui convidado a participar de uma consulta-palestra sobre plano de carreira. Lembrem-se de que era a semana do executivo. Não fui à palestra. Eu queria mesmo era um Big Mac.

Antes, porém, participei de mais um "evento": a famosa massagem subaquática. Trata-se de entrar numa banheira de aço inoxidável, com água quente, apoiar a cabeça numa tira de couro, de preferência fechar os olhos e ter seu corpo massageado por um jato d'água conduzido por uma profissional. É deveras relaxante.

13. Histeria da desintoxicação

O que se percebe nas pessoas que freqüentam o spa da Lapinha (e, creio, outros spas) é o que chamo de "histeria da desintoxicação". Vítimas da vida moderna, eles sentem verdadeira compulsão em relaxarem, em pensarem que seus corpos estão livres das toxinas do dia-a-dia, em ao menos acharem que estão mais saudáveis, mais jovens durante aquela semana que passam no spa. É um sentimento muitas vezes difuso, que pode ser melhor visualizado na cena a seguir.

Eu estava esperando para fazer a tal massagem subaquática quando sou interpelado por um senhor de seus 50 anos. Tem a barba por fazer e olheiras fundas. É de São Paulo. Sentado, ele esfrega os pés em pequenos rolinhos que, segundo ele, ajudam a relaxar e a desintoxicar (?), porque atingem os pontos certos na planta do pé. Qualquer coisa que se diga que faz bem, é aceita sem a menor discussão. Mistura-se massagem com exercícios aeróbicos com medicina oriental com orientação cristã. O senhor ao meu lado começa, depois de me explicar o funcionamento dos rolinhos de madeira, a cantar a ladainha da desintoxicação no spa.

Não é sem certa tristeza que olho para ele e penso que, em uns poucos dias, aquele senhor estará novamente no ar poluído de São Paulo, trabalhando 14 horas por dia e comendo em cinco minutos um suspeito cheese-salada na lanchonete da esquina. Nada disso importa para ele, contudo, se durante aquela semana ele vive uma vida condizente com as manchetes das páginas de saúde dos jornais, que proclamam os benefícios de tal e tal alimento, de tal e tal hábito.

E se durante aquela semana, somente aquela semana, ele alimente (sem trocadilho) a esperança de que o câncer não venha antes da hora.

* Vale aqui uma grande ressalva. Este texto não se pretende a plágio do livro O Diário de um Magro, de Mário Prata, que relatou sua experiência num spa em São Paulo, há alguns anos. Até porque Prata esteve, ao que eu saiba, no spa para uma desintoxicação alcoólica, enquanto eu fui a convite do próprio spa da Lapinha.

Paulo Polzonoff Jr
Rio de Janeiro, 5/9/2001

 

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