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Segunda-feira, 31/7/2006
Legião fala a língua dos outros
Ram Rajagopal

Pois é, são oxalá, não-sei-quantos-anos do fim da Legião, que encerrou suas atividades com a morte do seu mentor e sua principal voz, Renato Russo. O que a banda representa para mim, pessoalmente, nada tem a ver com seu valor artístico intrínseco. Se é que tal valor existe na arte, mas isto é assunto para um outro texto. Mas me perguntei por que a banda conquistou tantos jovens e adultos e continou a ter sua marca até hoje no rock brasileiro?

Uma resposta cínica que já ouvi de um colega: porque nosso rock sempre foi mal das pernas e só há poucos anos começou a ter uma diversidade maior, apesar da qualidade ainda duvidosa. Realmente, se colocarmos como parâmetro de comparação o rock/folk original, não há no rock nacional nada que chegue perto de Beatles, em termos de composição, ou de Paul Simon em termos de melodia e letras, ou de Bob Dylan em termos de maturidade lírica. Mas é uma comparação injusta, afinal o rock é música anglo-saxônica, do working class anglo-americano. O rock no Brasil é essencialmente música da classe média. Afinal, tem que ter dindim para se comprar um disco importado dos Stones ou dos Beatles, como era bem lá no inicio. E mais dindim ainda para entender inglês.

Mas o que tudo isso tem a ver com o sucesso da Legião Urbana? Bom, eu vou propor aqui uma observação casuística, e, se vocês quiserem, pesquem a isca. A banda, e especialmente Renato Russo, traduziu esta língua dos outros, o rock, para o português. Não foi o primeiro a fazer isso. Mas foi o primeiro a destilar a música de acordo com as expectativas da classe média. Especialmente de uma classe média jovem, da década de 80, desiludida com as perspectivas do país, e de certa forma entediada com a vida. A grande qualidade do Russo é traduzir assepticamente emoções e idéias, sem ameaçar nada ou ninguém. Nenhum leitor espera que gangues de motoqueiros saiam por ai quebrando bairros após ouvir Renato Russo. No máximo, um suicídio aqui e ali, mais por tédio da vida do que por revolta com a sociedade.

Há um mérito enorme nisso, sim. Um bom artista não é só aquele que expõe sua visão desvairada do mundo. Até porque, como sua visão pode ser completamente única, pode se tornar totalmente desinteressante para os outros, sem capturar a imaginação e a emoção daqueles que tomam contato com ela. Renato Russo, e sua banda, souberam traduzir e simplificar o rock para a classe média brasileira. O cantor ou Dado Villa-Lobos - não lembro agora - em uma observação astuta, disse uma vez: "todas as nossas músicas são praticamente os mesmos três acordes". Quer algo mais simples e destilado do que isso? As letras também são, em geral, poeticamente simples, representam emoções que estão presentes em qualquer cidadão brasileiro de classe média. Agora vai lá cantar "Eduardo e Mônica" para o Paul McCartney, em sua juventude de Liverpool, e provavelmente teremos uma reação de: sim, e daí?

A banda como um todo evoluiu um pouco em suas melodias e letras ao longo da carreira. No entanto, algo que eu pessoalmente não admiro muito na Legião foi que, apesar de todo o sucesso construído, eles não souberam explorar o próximo passo, que seria simplesmente a pergunta: será que o rock que estou traduzindo é tudo? Onde mais eu posso ir? Aonde posso experimentar? Minhas canções prediletas - e que entraram para a história - estão em discos seminais que representam descontinuidades com o passado. Não acredita? Ouçam Wish You Were Here, o manjado Sgt. Pepper's (ou melhor, Revolver), Exile on Main Street, Nevermind, Siamese Dream, Disraeli Gears... Para o Legião, a discontinuidade que não se manifestou completamente foi ter descoberto sua voz independente, sua voz de "tradutor". Este é o Renato, um pouco mais "explorador", que se encontra em Equilíbrio Distante. Para uma "voz atormentada do punk", nada mal seguir uma carreira em ópera...!

Alguns dos grandes momentos de Renato Russo como letrista (grande dentro do que é grande no rock brasileiro) aconteceram quando ele expressou a voz de outros, como na linda música "Monte Castelo", um apanhado de Paulo - o apóstolo! - e Camões:

"Ainda que eu falasse a língua dos homens/ E falasse a língua do anjos, sem amor eu nada seria./ É só o amor, é só o amor./ Que conhece o que é verdade./ O amor é bom, não quer o mal./ Não sente inveja ou se envaidece./ O amor é o fogo que arde sem se ver./ É ferida que dói e não se sente./ É um contentamento descontente./ É dor que desatina sem doer./ É um não querer mais que bem querer./ É solitário andar por entre a gente./ É um não contentar-se de contente./ É cuidar que se ganha em se perder./ É um estar-se preso por vontade. É servir a quem vence, o vencedor;/ É um ter com quem nos mata a lealdade./ Tão contrário a si é o mesmo amor./ Estou acordado e todos dormem, todos dormem, todos dormem./ Agora vejo em parte. Mas então veremos face a face."

Renato falou a língua dos brasileiros de classe média, e ao menos esteve acordado e antenado para as mensagens que são universais a este grupo. Em "Monte Castelo", no entanto, ele deixa bem claro, "sem amor eu nada seria". Amores de Renato? Os fãs, suas músicas, seus casos, e sua vida de popstar rebelde, que nos cai bem pois não nos ameaça já que ele foi, e sempre será, um dos nossos? Não tome minha isca, meu chute calibrado, como visão cínica... O que o Legião representa para você é seu, individual, intransferível.

Quanto à minha opinião pessoal e intransferível, vou ficar com ela só para mim. Mas lhes conto que, do letrista Renato, algumas de minhas estrofes mais queridas são as seguintes - fora "Monte Castelo" (sim, podem me bater, soam bem maniqueístas...):

"E há ferrugem nos sorrisos/.../ Meu amor, disciplina é liberdade/ Compaixão é fortaleza./ Ter bondade é ter coragem/ Ela disse: Lá em casa tem um poço mas a água é muito limpa."

Ou:

"E é só você que tem a cura para o meu vício/ De insistir nessa saudade que eu sinto/ De tudo que eu ainda não vi."

De qualquer maneira, a Legião não é nada que precise ser levada tão mais a sério que... o Roupa Nova? E sua excepcional rendição de "Whisky A Go Go"...

(E uma amiga apontou e eu concordo: prestem atenção em "Índios" e reparem como Russo espertamente usa o gradativo aumento de tom na música para gerar tensão. Fico imaginando se uma idéia semelhante não tornaria mais interessante alguns dos BRoques entediantes que andam saindo nas rádios ultimamente...)

Ram Rajagopal
Berkeley, 31/7/2006

 

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